domingo, 1 de agosto de 2010

A expressão "contrabando"

A idéia de contrabando surgiu logo que comecei a investir no tema do meu doutorado.

Fui aceito no programa de Ciências da Comunicação animado com leituras que têm pouco ou nada a ver com mídia. Nos seis meses que antecederam o ingresso na Unisinos, minhas estantes foram inchando com biologia e filosofia evolucionista. Havia me encantado com autores darwinistas e um sintoma inevitável foi acompanhar o barulho que entidades e atores religiosos faziam toda vez que um livro de Richard Dawkins ou Sam Harris aparecia entre os mais vendidos.

Ao mesmo tempo, a disputa simbólica entre believers e non-belivers (acho que crentes e descrentes já significam outra coisa: “crente”, no Brasil, virou uma referência preconceituosa a evangélicos) me deu um ânimo político que havia tempos não sentia. Sou professor e pesquisador, não posso me dar ao luxo de esquivar-se do debate. Por isso eu me posicionei publicamente sobre o assunto, e minha trajetória intelectual, sentimental e social me colocou no lado mais apedrejado.

Ao iniciar um estudo sistematizado e me aprofundar na leitura que representa a “mídia” na equação, minha pura militância foi (felizmente) minguando em troca de um interesse cada vez maior no enorme mistério que é, ainda, a forma como pessoas e entidades se transformam conforme os protocolos da mídia.

Minha sorte é que, antes de eu colocar os autores da Comunicação no topo da minha lista, mergulhei nos estudos de religião (nos limites que um neófito dá conta, claro), desde aspectos teológicos até a controversa história dos mitos que envolvem, principalmente, as três grandes monoteístas. Para se ter uma idéia, adquiri outras duas bíblias, além de uma que eu já tinha (e ganhei uma Bíblia de estudos da Queila, minha aluna ultra-believer que gentilmente se preocupa com o destino da minha alma).

Por causa dessas aproximações, me ocorreu que a religião cristã, por exemplo, sobrevive há dois mil anos apesar das inúmeras incongruências, contradições, crises e tensões pelas quais passa. Sem dúvida, é uma instituição muito sólida. É verdade que o cristianismo é muito recente na História para se vangloriar de ter passado do estágio de observação, mas pelo menos na nossa época, não há pedofilia, dinossauros, templos misteriosamente incendiados, guerras, machismo, homofobia ou coerência lógica que abalem suas estruturas mais profundas.

Mesmo assim, a mídia faz muita diferença para a religião. Muda seu comportamento, agenda suas estratégias e influencia até mesmo a teologia. Para boa parte dos cristãos, especialmente adeptos de importantes seitas evangélicas, a mídia é demoníaca, um instrumento de corrupção moral e um antro liberal dominado por gays, defensores do aborto, dos direitos das mulheres e de uma liberdade de expressão perigosa.

Essas mesmas seitas, quase cem por cento delas, possui programas de televisão, websites, jornais ou outros mecanismos mediáticos. Melhor do que isso: uma visita à maioria dos templos e igrejas é suficiente para que percebamos que os protocolos da mídia são praticados até quando não há dispositivos midiáticos no ambiente. O pastor fala com seus fiéis como em um programa de auditório, as frases de efeito, espontaneamente gritadas pela assembléia, são as mesmas que ouvimos em filmes hollywoodianos ou na nova onda de canções gospel (cujos intérpretes, aliás,  não parecem nada constrangidos por adotar os ritmos e atitudes da moda, mesmo que sejam o erotizante funk carioca ou uma paródia de rock satânico).

Só que a mídia também se protege – se autofortifica – e mantém estratégias para impedir uma livre circulação de mensagens religiosas. Para praticar proselitismo, um cristão precisa freqüentar o espaço já rotulado, ou seja, os programas e veículos claramente delimitados como religiosos. Isto é, convencer quem já está convencido. Naturalmente, é pouco. É preciso “invadir” espaços além-fronteiras e “espalhar a mensagem”. Mas como fazer isso?

Foi quando comecei a prestar atenção na estratégia dos “atletas de cristo”. No meio de uma entrevista, na comemoração de um gol, no agendamento das atividades extra-esportivas... O repórter pergunta sobre o jogo e o jogador inclui Deus na resposta; o atacante marca um gol, corre para a câmera e levanta o uniforme para mostrar uma camiseta onde se lê “I belong to Jesus”, sua assessoria de imprensa distribui releases falando da paixão do atleta por determinada banda gospel...

O ator, portanto, transporta para ambientes distintos idéias sobre as quais não foi convidado a falar. Ele “contrabandeia” a Palavra.

Claro que o conceito de contrabando não serve só para a performance religiosa no espaço público. Todos nós somos contrabandistas, pois, por mais que se fale do desaparecimento das fronteiras entre os campos sociais (uma mistura de tudo, em que não sabemos onde começa um campo e termina outro), a própria linguagem faz o papel de estabelecer limites. Ora, uma cadeira se chama cadeira porque não é mesa – mesmo que possamos usar uma cadeira como mesa e vice-versa.

Nesse ínterim, tive a oportunidade de iniciar a orientação de três trabalhos de conclusão de curso sobre religião, dois deles pesquisados por alunos que se assumem bastante religiosos. Desse pequeno e valioso grupo, expandi a idéia para, sobretudo, calouros de Jornalismo e Publicidade/Propaganda. Somos em pelo menos dez, no momento, e os interesses de meus orientandos são tão diversos quanto inusitados. O que os une é o problema conseqüente das hipóteses que comecei a levantar: como estudar um processo de Comunicação sem se orientar exclusivamente por métodos consagrados por outras disciplinas (como a Sociologia e a Psicologia, por exemplo)? Para responder essa pergunta é preciso abraçar a mais nobre das áreas filosóficas, a epistemologia – a ciência que descortina o modo como construímos conhecimento.

É por onde deverá andar esse blog, além de servir de suporte para atividades nas disciplinas que ministro, intimamente relacionadas com a problemática: Teoria da Comunicação, Análise de Discurso e Seminário de Pesquisa.

E prometo textos menores...

2 comentários:

  1. Caríssimo Victor,
    Ciente de minha limitação ao discutir o tema com você, tomo a liberdade de procurar outra palavra para se encaixar no seu texto, em substituição a "contrabando". Expressar-se, sem ser convidado a fazê-lo, não é ilegal, como sugere o texto. Talvez seja simplesmente cruzar fronteiras, onde não se exija vistos ou se cobre qualquer tributo. Cabe àquele no papel de invasor e ao que sentir-se invadido adequarem em busca de seu espaço para distribuir sua mensagem. Observo também que a invasão ocorre em mão dupla. Quando o atleta declara "I belong to Jesus" durante uma partida futebol, e o casal homossexual da novela das oito, que consulta uma vidente ou um espírita sobre suas vidas passadas e ajudá-los a decidir sobre a fertilização artificial, enviam aos receptores non-believers e aos believers, respectivamente uma mensagem inesperada e, quem sabe, indesejada, mas não proibida. Outro exemplo: quando em discursos nos programas religiosos de televisão, as outras emissoras são tratadas como demoníacas enquanto do outro lado, evangélicos, personagens de novelas, são caricaturas com base em estereótipos, ambos lados cruzam, na minha opinião, a mais importante das fronteiras - a do respeito.

    João Luiz Guarneri

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  2. Olá, João! Muito obrigado pelo comentário e desculpe por demorar a respondê-lo (imagino que ainda esteja no norte gelado do mundo!).
    Em primeiro lugar, acho que não "senti" o termo da mesma maneira que ti, talvez até porque "contrabando" é um termo subversivo e, de certa forma, eu gosto de ações subversivas. Concordo que são ações de mão-dupla (ou de muitas vias) e que o conceito não é exclusividade da estratégia religiosa. Mas veja que não estou tratando os campos como equivalentes no jogo discursivo. Embora religião e mídia concorram, elas têm proporções diferentes: a segunda é, também, panorama de reconhecimento da realidade. É justo dizer que os parâmetros religiosos ajudam a definir "o que é" a mídia, mas o contrário é, atualmente, muito mais forte e intenso. Abraços!

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