terça-feira, 10 de agosto de 2010

O que é um problema de Comunicação?

A Comunicação é um campo de pesquisa que, se encarada como ciência autônoma, dá ainda os primeiros passos. Naturalmente, suas principais fontes são de outras áreas, interessadas em problemas para os quais a mídia é só parte do processo. Os “pais fundadores” do ramo, ocupado primeiramente pelos fenômenos de massa proporcionados pelos meios de comunicação, são sociólogos, psicólogos, filósofos, linguistas. Daí que, no passado recente, Laswell, Shannon, Wiener, Morin, Saussure, etc. eram as fontes inalienáveis. Hoje, um rápido passeio pelos artigos apresentados em eventos de comunicação mostra que as contribuições de Bourdieu e Deleuze estão para bibliografia do campo tanto quanto Freud e Lacan para a de psicanálise.


O esforço de adaptação da bibliografia corrente (por exemplo, deslocar o paradigma indiciário da micro-história para a investigação sobre produtos da mídia ou retirar do método etnográfico elementos para estudar a circulação da notícia) é parte importante do desenvolvimento de uma ciência. Mas o momento histórico apronta outra dificuldade: a luta pelo status de disciplina autônoma não seria anacrônico? Parte dos epistemólogos acredita que os limites entre as áreas são cada vez mais nebulosos e o estabelecimento de “franquias” já não daria conta de compreender os objetos. Estes defendem estudar a Comunicação transdisciplinarmente ou entendê-la como “interdisciplina” (Bougnoux, 1999) – alguns animados também pelo que seria uma “oportunidade histórica”: a de tornar a área modelo de um novo paradigma científico.

À parte da polêmica, algumas ideias parecem consensuais (ou próximas) e talvez ajudem a iluminar os parâmetros mais comuns para se definir o que, afinal, é problema da comunicação – mesmo que se parta de um referencial teórico alheio ao campo.

1) Ainda que aceitemos a Comunicação como parte das Ciências Sociais ou Humanas, talvez seja prudente ultrapassar as definições, hoje referenciais, eleitas por Piaget (1976): nem nomotética, histórica, normativa ou filosófica, mas interpretativa. Isso quer dizer que a Comunicação não procura leis universais, conceitos abstraídos em fórmulas, especulações metafísicas ou releituras do percurso histórico da área. Cada objeto carrega em si “verdades provisórias” a serem desentranhadas pelo ângulo escolhido e explicitado pelo pesquisador. É provável que essa vocação seja a principal responsável por uma tendência cada vez mais dominante de pesquisas empíricas (como nos mostra Maria Immacolata Vassalo de Lopes, 2010).

2) Desde que, em 1939, uma audiência estimada em 40 milhões de norte-americanos acreditou na invasão de marcianos por conta da famosa transmissão radiofônica de Guerra dos Mundos, o papel dos meios de comunicação de massa se tornou um dos problemas centrais na compreensão da sociedade (* aí embaixo está a primeira parte de um documentário sobre o evento! Aqui,cortesia de Sofia Burakowski, o link para o programa original, narrado por Orson Welles: http://www.4shared.com/file/h1fDVKDi/Orson_Welles_-_War_of_the_worl.html). De lá para cá, a perspectiva sobre a mídia passou de suporte persuasivo dos conteúdos (teóricos da “Agulha Hipodérmica” [Laswell e Lazarsfeld, 1978]; Escola de Chicago [Gastaldo, 2009], etc.), transformadora da sensibilidade humana (Wiener, 1973; Mcluhan, 2002; Levy, 2002) a articulação central das mediações sociais (Palo Alto [Braga, 2004] e Estudos Culturais; Goffman, 1998; Rodrigues, 2009) ou sistema autônomo e inexpugnável (Luhmann, 2005) e, finalmente, elemento “atravessador” de todos os campos contemporâneos – para além, inclusive, dos próprios meios (Verón, 2000; Mata, 2005; Martin-Barbero, 1988, 2008, etc.). Nesta última fase são comuns, nos trabalhos de muitos pesquisadores, expressões como “ambiência midiática” (Gomes, 2006), “mediatização” (Braga, 2007) ou “midiatização” (Ferreira, 2008, 2010 ).

3) Vista dessa forma, a influência da mídia na construção da realidade é um “movimento” ou um “processo”. Caberia ao investigador compreender, por exemplo, como ocorre essa transformação e como os protocolos da mídia modificam os protocolos dos outros campos (como a religião se adapta aos dispositivos midiáticos, de que forma a telenovela agenda determinadas ações sociais, o que a web faz com as sociabilidades, etc.).

4) Disciplina, interdisciplina, transdisciplina ou apropriação das Ciências Humanas e Sociais, a Comunicação se justifica como campo autônomo de conhecimento justamente por causa do evidente fenômeno da mediatização (ou midiatização). É verdade que, por ora, as angulações de pesquisa parecem se firmar em três pilares “estrangeiros”: a semiodiscursividade, a perspectiva antropológica/sociológica e as questões tecnossimbólicas (Ollivier 2010), de onde saem as principais referências metodológicas (respectivamente, semiótica/análise de discurso, estudos culturais/mediações e midiologia/estudos da web, etc.). Sendo assim, a adaptação contínua dos procedimentos inspiradores vai desenhando a ciência comunicacional. O “nosso” problema é o papel do dispositivo midiático nos inúmeros panoramas em que está inserido.

• BOUGNOUX, Daniel. Introdução às ciências da comunicação. Bauru: Edusc, 1999.

• BRAGA, José Luiz. Mediatização como processo interacional de referência. In: Médola, Ana Sílvia; Araújo, Denize Correa e Bruno, Fernanda (orgs.). Imagem, Visibilidade e Cultura Midiática, p. 141-167. Porto Alegre, Sulina, 2007.
• BRAGA. Adriana. Comunicação e transdisciplinaridade – na trilha de Palo Alto. Artigo apresentado no XVIII Compós. São Bernardo do Campo (SP), 2004.
• FERREIRA, Jairo; PIMENTA, Francisco José e SIGNATES, Luiz. Estudos de comunicação: transversalidades epistemológicas. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2010.
• FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. SP: Cadernos PUC, 1974.
• GASTALDO, Édison e BRAGA, Adriana. O legado de Chicago e os estudos de recepção, usos e consumos midiáticos. Trabalho apresentado no XVIII Encontro da Compós, na PUCMG, 2009.
• GOFFMAN, Irving. A representação do Eu na vida cotidiana. Petrópolis: Vozes, 1998.
• GOMES, Pedro Gilberto. Filosofia e ética da comunicação na midiatização da sociedade. S. Leopoldo: Editora Unisinos, 2006.
• LASWELL, Harold. A estrutura e a função da comunicação na sociedade. IN: Cohn, Gabriel. Comunicação e Indústria Cultural. SP: Editora Nacional, 1978.
• LAZARSFELD, Paul e MERTON, Robert. Comunicação de massa, gosto popular e ação social organizada. IN: Cohn, Gabriel. Comunicação e Indústria Cultural. SP: Editora Nacional, 1978.
• LEVY, Pierre. A inteligência coletiva. SP: Loyola, 2002.
• LOPES, Maria Immacolata Vassallo de. Reflexividade e relacionismo como questões epistemológicas na pesquisa empírica em comunicação. IN: Braga, J. L., Lopes, M. I. V. e Martino, Luis Cláudio (orgs). Pesquisa empírica em Comunicação. SP: Editora Paulus, 2010 (no prelo).
• LUHMANN, Niklas. A realidade dos meios de comunicação. SP: Paulus, 2005.
• MALDONADO, Alberto E. A perspectiva transmetodológica na conjuntura de mudança civilizadora em inícios do século XXI. Em: MALDONADO G., Alberto; BONIN, Jiani Adriana e ROSÁRIO, Nísia Martins (org). Perspectivas metodológicas em comunicação: desafios na prática investigativa. João Pessoa: Editora Universitária da UFPB, 2008.
• MARTIN-BARBERO. Jesús. As formas mestiças da mídia. IN: Pesquisa FAPESP, n. 163, setembro de 2009.
• MATA, Maria Cristina. Los médios massivos em el estúdio de la comunicación/cultura.. Revista Conexão – Comunicação e Cultura/ Universidade de Caxias do Sul, p. 13-22. V. 4, n. 8, jul./dez. RS: Educs, 2005.
• OLLIVIER, Bruno. A ciência da comunicação como interdisciplina. Seminário para o PPGCOM da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) em 21 de junho de 2010.
• PIAGET, Jean. A situação das ciências sociais do homem no sistema das ciências. Lisboa: Bertrand, 1976.
• RODRIGUES, Adriano Duarte. Estratégias da Comunicação. Lisboa: Editorial Presença, 1990.
• VERÓN, Eliseo. Espacios mentales. Barcelona: Gedisa, 2000.
• WIENER, Norbert. Cibernética e sociedade: o uso humano de seres humanos. SP: Cultrix, 1973.

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