domingo, 8 de agosto de 2010

Não é sobre Popper

Tenho uma pequena experiência com Karl Raymond Popper (1902-1994) que oferece alguns elementos exemplares da forma como nos aproximamos da ciência.

Veja se o Popper não lembra o Adrian Monk!
Há uma dimensão das próprias idéias do filósofo austríaco – a crítica ao subjetivismo, a autonomia do mundo do conhecimento, a lucidez quanto aos limites da ciência, etc. – mas há, também, o panorama do comportamento intelectual de Popper e dos pensadores que dialogam, direta ou indiretamente, com ele – e isso inclui a qualidade da escrita, a honestidade, o reconhecimento e a (respeitosa) divergência que caracteriza a construção do saber.

Quando me debrucei sobre “Conhecimento Objetivo” fiquei tão encantado com a habilidade de argumentação de Popper que, conseqüentemente, passei a incluir o assunto em todas as conversas. Até que uma colega advertiu: “credo, que cara mais direita!” Eu já sabia que Popper é, muitas vezes, associado a uma compreensão “conservadora” da ciência, imagem talvez em parte constituída pelo estilo do filósofo: irônico, objetivo, crítico de qualquer sentimentalismo que porventura assalte a discussão.

Por outro lado, Luiz C. Martino, em um dos textos incluídos no livro “Epistemologia da Comunicação”, organizado por Maria Immacolata Vassalo de Lopes, tratou de uma “decepção”: um debate que “não houve” entre Adorno e Popper. O motivo parece ser o mesmo pelo qual minha amiga “reprova” Popper: Adorno estava interessado em levar o debate para um campo “extracientífico”. O filósofo frankfurtiano alegava que “a produção do conhecimento se encontra intrinsecamente determinada pelo conflito de interesses sociais e, consequentemente, o conhecimento seria apenas uma extensão e um desdobramento dos interesses aí presentes” (Martino, 2003: p. 70). Adorno, enfim, desautorizava Popper, identificando-o com posicionamentos políticos reprováveis.

Eu escrevi “por outro lado” porque Martino se mostrou solidário a Popper, mesmo reconhecendo que a posição do austríaco, paladino da ciência, não seja mais defensável que qualquer outra. “Ela também terá suas brechas, seus pontos de inflexão e obscuridade”, diz o Martino. Mas a recusa de Adorno, como argumenta o professor da UnB, torna qualquer evolução impraticável. É preciso, ele diz, “criar condições para que um debate epistemológico seja possível”.

Nos seus textos, Popper adota um discurso direto e sem afetações. Ele tem um qualificativo nada elogioso para o método das sensações e observações, caro a filósofos como Hume e Kant na chamada Ciência Moderna: “asneira subjetiva” (Popper, 1975, introdução: p. 7) e não se inibe de reivindicar que “resolveu o problema da indução” (p. 13- 14). Ao mesmo tempo é generoso tanto no esforço para se fazer entender (o estilo é “limpo” e didático) quanto no reconhecimento do trabalho até dos colegas que critica (ao refutar a “crença na crença” de Hume, trata-o como “uma das mentes mais racionais que já houve” [p. 16]).

Reconhecer a contribuição de Popper (citada por muitos filósofos, de diversas e contraditórias correntes de pensamento, como “imensa”) não tem a ver com simpatia nem mesmo com política – no sentido ideológico “forte” (na divisão sugerida por Norberto Bobbio) – mas com um esforço coletivo e construtivo do conhecimento. Cada época, cada lugar de fala, cada instituição, precisa mediar sua compreensão do mundo com suas conjecturas, com suas circunstâncias de inteligibilidade. Isso representa entender que nossa capacidade de descortinar o universo é limitada e sujeita ao escrutínio do tempo e da vigilância epistemológica (como diz Bachelard). Não há como desprezar o ambiente tecnológico, cultural, político da época em que interpretamos o conhecimento (aparentemente, até mesmo Thomas Khun negligenciou esses fatores ao identificar seus “paradigmas”). Mas é preciso se ter em mente que toda e qualquer contribuição sobrevive à época e ao pesquisador. Ela se torna parte de um acervo, independente de nossas sensibilidades (políticas, inclusive); torna-se o Mundo Três – para usar a expressão do próprio Popper.

Essas reflexões me fizeram compreender que o ponto crítico da epistemologia, seu “desafio interno” mais premente, é pensar a construção em duas dimensões nem sempre articuladas entre si: o compromisso com o humano, com as necessidades dos homens e mulheres, com a identificação histórica, cultural, geográfica; e com o trabalho coletivo e complexo, além de nossos próprios limites e nosso próprio tempo lógico, que leva o progresso da humanidade para além das casualidades de nossa existência.
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  • POPPER, Karl. Conhecimento Objetivo. SP: Itatiaia, 1975.
  • MARTINO, Luís C. As epistemologias contemporâneas e o lugar da Comunicação. Em: LOPES, Maria Immacolata Vassalo Lopes. Epistemologia da Comunicação. SP: Loyola, 2003.
  • BACHELARD, Gaston. Epistemologia. Lisboa: Edições 70, 2010.
  • KHUN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. SP: Perspectiva, 2001.
  • BOBBIO, Norbert. Direita e esquerda. SP: Unesp: 2001.

2 comentários:

  1. parecido com Adrian Monk? HAHAHAH'
    so o Victor. Ai que saudades dessas aulas teoricas e participativas com exemplos bem inusitados. Do professor de teoria. Parabéns Victor.Estou seguindo seu blog.
    beijo grande.

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  2. Valeu, Carol. Mas não é um recurso pedagógico: o Popper é a cara do Tony Shaloub mesmo!

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