quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Eagleton socorre Deus

O filósofo e crítico literário Terry Eagleton é um dos "marxistas referenciais" a quem recorremos para, por exemplo, ironizar pós-modernos e outros entusiastas do relativismo.

Mas é independente o suficiente para sair defendendo Deus dos "ataques ateístas" que ele garante terem virado moda desde que Richard Dawkins e Christopher Hitchens romperam a espessa barreira do politicamente correto e declararam a crença em Deus "um delírio" ou provocadora dos problemas mais medonhos do mundo contemporâneo.

Ou seja, ele consegue ser herói e vilão do mesmo tipo de gente.

Claro: pergunte a respeito de Eagleton a um típico pastor norteamericano do meio-oeste, daqueles cujo sermão ainda confunde marxismo com comunismo, e ele lhe descreverá um sujeito perigoso... até que ouça o britânico defender que a religião pode promover uma elevação ética imprescindível e urgente nesse cenário de barbárie que domina o planeta.
Já se der de cara com a fala conciliadora de Eagleton, um simpatizante do holismo e da metafísica barata pensará nele como um grande sujeito, "iluminado" e lutador contra o "pensamento único", blá, blá, blá. Citará o filósofo a torto e a direito até que leia, por exemplo, "As ilusões do pósmodernismo" (Zahar). Verá ali algumas ironias bem duras direcionadas aos apóstolos dessa "complexidade" de autoajuda.

Apesar de se apresentar tantas vezes como marxista, Eagleton tem o comportamento de um pensador independente, que não se sente compromissado com nenhuma linha, nenhuma coerência apriorística. Nesse sentido, é um exemplo de cientista contemporâneo. Autônomo e honesto.

Mas talvez ele incorra em certa leviandade ao criticar (em grande parte, com razão) a campanha ateísta de Richard Dawkins e companhia. A posição política de Eagleton é inatacável e mesmo gente como eu, leitor voraz do biólogo inglês, reconhece que os ataques à religião às vezes soam picarescos. Agora, uma leitura verdadeiramente atenta ao que Dawkins, Sam Harris, Daniel Dennett, Karen Armstrong, Edward Wilson, Michael Onfrey, Luc Ferry, Bart Ehrmann, Salman Rushdie, Ian McEwan escrevem nos oferece dados consistentes que não deixam a religião tão sossegada assim.

Para começar, Eagleton entende que os ataques dos ateus militantes é contra Deus - o que é até meio ofensivo à categoria intelectual dos seus criticados. Ora, se Deus é uma fantasia para os ateus, a crítica é contra determinadas práticas e posturas da religião - o que é uma coisa completamente diferente. Sem dúvida, a palavra "ateu" está relacionada à negação da existência de um deus ou vários deuses, mas a ação política desses indivíduos tem a ver com as consequências da crença e não do status ontológico do objeto de devoção.

É evidente que a religião tem um papel muito positivo em vários processos de civilização da sociedade. Mas negar a crítica a ela também é desproporcional. Eagleton supõe que a onda ateísta é uma máscara para o ódio contra o povo muçulmano. Ao sugerir a confusão, ele pratica a mágica vocabular que opera o mesmo crime que denuncia. Não há como negar que a tradição religiosa é o único lastro "moral" para que muitos países pratiquem punições e prevenções bárbaras e absurdas, como a castração feminina e a morte por apedrejamento. O caso de Sakineh nem deveria ser alvo de "polêmica". É uma obrigação de qualquer nação acolher uma mulher que foi condenada a morrer apedrejada, não importa que crime tenha cometido.

Pense nas minúcias: um homem tem o direito de morrer apedrejado com os braços livres, capaz, no mínimo, de lutar pela vida enquanto é alvo das pedras. À mulher, claramente tratada como inferior e impura, nem isso: é enterrada até o pescoço. Um ser humano demora entre uma hora e uma hora e meia para morrer enquanto é alvejado.

O esforço para defender a crença em uma entidade abstrata - embora muito importante no imaginário - não pode ser cegar a defesa dos direitos humanos e políticos. Sucumbir a tal relativismo é dar muitos passos para trás. E é terrível que ação política seja confundida com "nobreza" e "respeito" aos costumes alheios.
***
De qualquer forma, é fascinante a forma como Terry Eagleton se posiciona, acendendo o debate, olhando pelas perspectivas que nem sempre são encontradas no senso comum da polêmica. Como diz Gaston Bachelard, o senso comum também afeta a ciência: quando os indivíduos estão muito confortáveis com suas teorias, é hora de aparecer alguém e acabar com a tranquilidade.

Algumas indicações:
Eagleton, Terry. As ilusões do pósmodernismo. RJ: Jorge Zahar Editor, 1998.
Eagleton, Terry. Depois da crítica. RJ: Civilização Brasileira, 2005.
Na Amazon, você consegue comprar o novo e fundamental Reason, Faith e Revolution: reflections on the God debate por menos de 10 dólares na edição impressa (usada) e cerca de 12 dólares na versão para Kindle.

Os livros que Eagleton critica:
DAWKINS, Richard. Deus, um delírio. SP: Companhia das Letras, 2008.
HITCHENS, Christopher. Deus não é grande. RJ: Ediouro, 2008.

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