sábado, 14 de agosto de 2010

Certas idéias de progresso não são progressistas

Na quinta feira, eu participei de uma mesa sobre pesquisa no Seminário de Comunicação que comemora os 25 anos do curso de Jornalismo da Universidade Estadual de Ponta Grossa. Ao longo da semana, 12 ex-alunos foram convidados para falar de suas experiências, propor caminhos, celebrar a própria formação.
O tema que escolhi me parece muito importante para esse espaço - o problema antes do referencial teórico nas pesquisas - e até gerou algum debate entre os participantes (metade deles não concordava comigo!). Mas vou deixar para uma próxima postagem.
Visitando a cidade, fiquei sabendo que a prefeitura vai passar o trator sobre a tradicional feirinha do bairro São José. A alegação é que, no lugar, será construído um centro de educação infantil. Hoje o S. José é um dos bairros mais nobres da cidade e o espaço ocupado pelos feirante é valioso. A administração pública sabe disso: parte importante do capital dos aliados do prefeito Pedro Wosgrau, que é empreiteiro, vem da especulação imobiliária. Onde hoje poucos feirantes vendem seus produtos, prédios lucrativos podem ser erguidos.
Independentemente de quais são as razões explícitas e implícitas para a mudança, o que gostaria de provocar é uma reflexão sobre a noção que boa parte dos administradores públicos ainda têm de "progresso". Isso tem a ver com nosso espaço, porque ciência e política andam juntas nesse setor. O longo predomínio do funcionalismo como regra da construção do conhecimento se confundiu com a necessidade de erguer o mundo urbano. Boa ciência era a que estava vinculada ao "progresso" desenhado a cimento e tijolo. A valorização das engenharias, como atividade de status, surgiu dessa influência da revolução industrial no desenvolvimento das cidades. Na Idade Média, o que equivale hoje a engenharia era arte servil, não de homem livre. Considerada baixa, pois não dependia só do "espírito". Depois do Renascimento, esses homens práticos passaram a ser valorizados até tomar o lugar principal da elaboração do mundo. Em algum momento da história, o prédio não era mais o suporte da felicidade humana. Ele próprio era o fim! Daí a cultura de arranha-céus que tomou conta de Nova York e Chicago, por exemplo.
Mas isso já não é mais assim. Hoje, qualquer epistemólogo sabe que a evolução de nosso entendimento sobre a transformação da natureza e as próprias consequências da cultura do cimento levou a ciência para outras percepções - para o compromisso, inclusive, com os fenômenos menores, os grupos pequenos, o respeito à memória e à identidade.
Escrevi ontem mesmo, na hora do almoço e apressadamente, um texto sobre isso e mandei para o jornal Diário dos Campos, de Ponta Grossa. Foi publicado hoje - http://www.dcmais.com.br/index.cfm?secao_id=33 Reproduzo aqui:



Se eu pudesse identificar qual é minha memória mais antiga, acho que teria a ver com um cheiro delicioso de frutas e verduras em uma típica manhã fria e ensolarada de Ponta Grossa, colorida por embalagens, toldos e caixas púrpuras. Lembro de pedir pastel de palmito e do constrangimento que minha mãe passava quando, antes de aprender a falar “pimentão” corretamente, eu perguntava se ela compraria “pintão vermelho”.


Toda vez que algo parecido com isso me assalta, mesmo que vagamente parecido, sou tomado de uma felicidade inexplicável. Dá saudade, e nem sempre consigo entender do quê. Nasci na rua Minas Gerais, por isso tenho certeza que essa imagem só pode ser do alvorecer da minha vida. E só pode ter a ver com a Feirinha da São José.

É curioso, na verdade, pois uma emissora de TV falou da Feira como se ela tivesse 15 anos. Eu vou fazer 37 neste ano e tenho certeza que não passei os primeiros quinze pedindo “pintão” na minha salada.

Na verdade, dizer que a Feira tem 40, 15, 10 ou 5 anos não faz mais diferença. Foi decidido que ela não é relevante nem capaz de tornar a vida dos pontagrossenses melhor. Quem quer que tenha decidido tem um entendimento muito curioso sobre felicidade, uma vez que o espaço cultural e afetivo do bairro São José dará lugar a um centro de educação ou, quem sabe, a um portentoso prédio de apartamentos. Ou ainda a qualquer outra construção grande o suficiente para desenhar sombras pelas calçadas.

De um ponto de vista muito popular no século 19, os pensadores da prefeitura têm razão! Os números são indiscutíveis: hoje no máximo quinze feirantes seguram a tradição. As pessoas que freqüentam o lugar não lotariam nem uma modesta zona eleitoral de um bairro bem pouco populoso. Talvez todo o resto do município já esteja bem servido de centros de educação infantil e o tradicional São José, na região mais nobre da cidade, seja prioridade. Talvez o progresso da cidade precise de mais visibilidade e a “limpeza” da área permita que um prédio, símbolo do avanço, cruze os céus e mostre para os visitantes que Ponta Grossa “cresce”!

Para esse tipo de mentalidade, o tempo e essa abstração que chamam de “cultura” não só são irrelevantes como chegam a atrapalhar. Por isso, é melhor desconsiderar ou quem sabe até eliminar esses traços de identidade. Então vamos fazer assim: 40 anos dá uma idéia de familiaridade, de coisa que parece ter acompanhado a infância e a maturidade das pessoas. Faz com que elas sintam uma inútil relação afetiva, ruim para os negócios, ruim para o “desenvolvimento”. Vamos ajudá-las a esquecer essa história toda. A partir de agora, a feira tem 15 anos. Amanhã, quem sabe, a gente lembre que ela tem só cinco anos. Com o tempo, ela nunca terá existido. E todo mundo fica satisfeito.

Essas idéias são realmente excelentes. Pelo menos eram há cem anos! Não há administração pública, ciência ou comunidade no mundo que seriamente pense que o progresso está relacionado com estatísticas, grandes obras públicas ou empreendimentos imobiliários. Essas coisas fazem parte da vida, sem dúvida, mas a história cansou de mostrar que o desenvolvimentismo do cimento não resolve nem a economia, nem a educação, muito menos a felicidade.

Por isso, me sinto menos preocupado com minha hibernação. Se eu passei quinze anos no estágio mais néscio da minha infância, balbuciando pintão no lugar de pimentão, os “empreendedores” que decidiram, unilateralmente, desconsiderar a importância da Feirinha da São José, estiveram crinogenizados desde a revolução industrial.

Freud diz que falar é trazer à consciência. Escrever esse texto parece ter me ajudado a esclarecer a misteriosa saudade que a Feirinha me provoca. Sinto falta de Ponta Grossa. Sensações como essa não são apenas luxos íntimos. São elas que nos trazem de volta, que nos chamam para retribuir ao nosso berço, ajudar nossa cidade a crescer (não apenas para cima). É esse senso de comunidade, esse sentido de pertencimento, que esperamos do lugar que nos referencia. Já usei esse trecho de As Cidades Invisíveis, de Calvino, centenas de vezes, mas não deixo de admirá-lo. Diz Marco Pólo a Kublai Khan, que lhe perguntava o que tinha visto de mais extraordinário no vaso império que visitara: “O que podemos esperar de uma cidade não são suas 7 ou 77 maravilhas, mas as respostas que ela dá a nossas perguntas”. A Feira tem respostas importantes para mim. Para você, não tem?

Um comentário:

  1. Ora vejam!!! Midiatizado!!!rsrs
    Adoro feiras! Fazem parte da minha memória e da minha infãncia. Elas pareciam maiores do que são hoje. Efetivamente eram! Bem como o modo de produção era direto. Hoje há os atravessadores e o brócolis que vem de São Paulo.
    Ainda assim cumpro o ritual de ir até elas, como uma referência histórica, como uma identidade a ser preservada, como uma resistência ao mundo do consumo. E porque gosto do sentido comunitário que ela exala!

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