quarta-feira, 25 de agosto de 2010

O voto é na performance. E ela é quase sempre muito ruim.

Jogar o jogo é a desculpa que inventamos para os políticos e nós mesmos. É o remédio para suportar o fato de que não votamos nos candidatos, mas nas suas habilidades discursivas na mídia. E “habilidades” é uma expressão que dá mais dignidade a ação do que ela merece.


Desde o megaloi moloi dos gregos (mais do que grandes feitos, ser capaz de dizer grandes palavras!) a performance é fundamental em qualquer situação de mediação social.

O problema é que o dispositivo da mídia foi tão interiorizado pela sociedade que às vezes esquecemos que ele existe. Deixa de ser uma ponte entre a gente e a “realidade”.

Mas a ponte não fica invisível. Não é que o público despreza que há mecanismos, protocolos, ações, discursos que são SÓ da mídia e de mais nenhum mundo reconhecível ou palpável.

É que, inundado das lógicas da mídia, o público cansa de tentar depurar a mediação. Sabemos que estamos vendo um filme, que o sujeito que leva uma facada é um ator e que a nave espacial é um efeito holográfico; mesmo assim, nos assustamos, torcemos, vibramos como se fosse de verdade. Atravessamos a ponte de olhos fechados, editando o tempo que passamos sobre seu chão e ligando, no imaginário, uma margem a outra como se nada estivesse entre elas.

Não é ignorância ou hipnose. É puro cansaço.

Esse fingimento é fruto, também, de carência. Pois o filme eleitoral é muito ruim.

Somos assaltados tantas e tantas vezes pelo cinismo que ele deixa de ser exceção. Ora, a propaganda dos partidos políticos na TV é insultante; a falta de discurso consistente é flagrante; a diferença entre os candidatos é... nenhuma! Mas, esse é o jogo. Queremos acreditar que, por detrás da performance – regulada por algum instinto marqueteiro inquestionável –, existe realmente posicionamento, liderança, inteligência e honestidade, qualidades que a lógica da publicidade abomina e, portanto, elimina do espaço público midiático.

Uma das conseqüências de aceitarmos pacificamente os protocolos publicitários da campanha é esperar que um político seja apenas um “representante” dos seus eleitores. Daí soar legítimo que equipes de pesquisadores, a serviço dos partidos mais relevantes, descubram “o que público quer ouvir” para ajustar o discurso de seus candidatos.

Ou seja, um candidato é bom desde que seja uma mistura pastosa de uma suposta concordância nacional (ou regional) sobre assuntos fundamentais da vida. Mas, como tais temas são capazes de nos entusiasmar ou derrubar na mesma intensidade, é melhor nem se posicionar sobre eles.

Por isso qualquer candidato vai dizer só aquilo que o senso comum reconhece como bonito ou bom, sem entrar em muitos detalhes nem levantar dúvidas.

Isso não é política.

Isso é propaganda de margarina.

Um político ideal precisa ser líder. Isso significa, muitas vezes, enfrentar seu eleitorado, debater com as pessoas que representa. Eu não voto em alguém que concorde o tempo todo comigo. Isso seria delegar ao deputado, senador, governador, presidente uma tarefa burocrática: “vá lá e preencha a ficha”. Algo que equivale à época que minha mãe me dava uma carteira de cigarros vazia para eu mostrar ao dono da mercearia e, assim, não errar na compra.

Eu precisaria me manter nos cinco anos de idade mental para aceitar essa tarefa.

Pois é o que a campanha eleitoral faz com seus candidatos. E que a gente aceita, não por debilidade mental, diferença de classe social, acesso a internet ou vaso sanitário.

Todos nós, pobres e ricos, homens e mulheres, jovens e velhos, aceitamos essa história porque ninguém briga com comercial de margarina.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Dispositivo interacional é o que procuramos enxergar na Comunicação

Como encontrar o observável próprio da Comunicação? Há um bom motivo para procurar? A resposta para a segunda pergunta é que, sendo pesquisada por outras ciências (especialmente Sociologia, Antropologia, Lingüística e Psicologia) e atraente ao interesse de todos os campos contemporâneos do conhecimento, a Comunicação se cercou de métodos e conceitos preparados para entendê-la em paralelo ao outras dinâmicas sociais/filosóficas/psíquicas.

O campo é “tema” privilegiado de interface às investigações caras aos cientistas sociais, mas a falta de investimento intelectual nos próprios dispositivos comunicacionais – como objetos de pesquisa em si – já começa a oferecer aos demais ramos do conhecimento percepções superficiais, ultrapassadas e mesmo mitificadas, quando não meramente casuísticas.

Ou seja, a concentração em fenômenos midiáticos independe da celeuma sobre a conquista do status de ciência ou disciplina autônoma. Olhar dirigido, arsenal de conceitos próprios e metodologia apropriada são necessidades epistemológicas de interesse universal.

Universal porque um movimento de “midiatização” é tão evidente na sociedade que é praticada como discurso tanto na ciência quanto no senso comum. Políticos, líderes religiosos e comunitários, militares, desportistas e até a própria mídia crescentemente incluem “mídia” como tema prioritário de estratégias e análises.

Trata-se, portanto, de um processo que supera a idéia de que os meios de comunicação produzem “transmissão” ou “trocas” de informação. Tamanha importância se deve ao fato de que a mídia se tornou o processo interativo de referência, em parte superando e em parte assimilando formas mais tradicionais de interação.

A dificuldade inicial é lidar com sistemas interacionais sem se deixar contaminar pelo patrimônio intelectual já construído sobre esse tema. Se tratamos, por exemplo, de como as identidades são forjadas pelos grupos sociais, poderemos recorrer a uma bibliografia secular da Sociologia e uma jovem, mas frutífera, contribuição dos Estudos Culturais. O que torna a interação contemporânea sui generes é o interposto que, supomos, transforma, direciona, reconfigura, pauta, agenda os processos de sociabilidade e reconhecimento do mundo; é aquilo que parte importante dos pesquisadores vem chamando de “dispositivo”, seja ele “midiático” ou “interacional”.

Tal idéia de dispositivo é, também, fruto de uma apropriação: o famoso conceito de Michel Foucault, aplicado pela primeira vez no contexto da vigilância. Foucault usa o panóptico de Jeremy Bentham (uma prisão circular em que os presos não conseguem ver se estão sendo vigiados) como imagem de um processo subjetivante da vigilância: de tanto serem observados, os indivíduos “internalizam” o processo e passam a agir conforme a vigília.

Esse é um aspecto fundamental e que, na verdade, separa uma leitura meramente instrumental dos meios de comunicação de seu papel como interface prioritária no reconhecimento do mundo. Ou seja, não são exatamente os mecanismos “TV”, “rádio”, “jornal”, “propaganda” ou “internet” que alteram os padrões de sociabilidade, mas a internalização dos protocolos demandados por esses meios. Como diz Fausto Neto (2004), “a midiatização situa-se em processos e contextos históricos e também em percursos de desenvolvimento de alta complexidade que impõem a necessidade de considerar mecanismos de explicação que são atualizados no movimento desses próprios processos históricos, e nos quais se passa o desenvolvimento das técnicas, dos processos e das práticas de comunicação” (p. 2).

Um exemplo dessa afetação da mídia na vida cotidiana é o comportamento de muitos pastores e padres diante de suas assembléias: mesmo quando não estão sob o espectro de lentes ou microfones a) pautam seus discursos conforme agendamentos estimulados pela mídia; b) (e mais importante) se apropriam de linguagens e gestuais configurados primariamente em função das tecnicidades dos meios. (A escolha da comparação com signos religiosos não é gratuita. O cristianismo é, independente de suas diversas vertentes, uma instituição solidamente constituída, depurada ao longo do tempo quanto a influências temáticas ou discursivas. Ainda assim, se transforma a olhos vistos sob a emergência dos dispositivos midiáticos).


BRAGA, José Luiz. Mediatização como processo interacional de referência. In: Médola, Ana Sílvia; Araújo, Denize Correa e Bruno, Fernanda (orgs.). Imagem, Visibilidade e Cultura Midiática, p. 141-167. Porto Alegre, Sulina, 2007.
FAUSTO NETO, Antonio. Midiatização: prática social, prática de sentido. Paper - IECO - Universidade Nacional da Colômbia /Unisinos.PPGCC/ São Leopoldo/ Bogotá, 2005.
FERREIRA, Jairo Ferreira. Uma abordagem triádica dos dispositivos midiáticos. Inédito, 2010.
FOLQUENING, Victor. Afetações do dispositivo interacional nas economias contextuais. II Encontro de pesquisa em comunicação, UFPR, 2010.
FOUCAULT, Michel. A microfísica do poder. SP: Graal, 2007.
KLEIN, Otávio. A gênese do conceito de dispositivo e sua utilização nos estudos midiáticos. Revista Estudos em Comunicação No 1, p. 215-231, 2007.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Eagleton socorre Deus

O filósofo e crítico literário Terry Eagleton é um dos "marxistas referenciais" a quem recorremos para, por exemplo, ironizar pós-modernos e outros entusiastas do relativismo.

Mas é independente o suficiente para sair defendendo Deus dos "ataques ateístas" que ele garante terem virado moda desde que Richard Dawkins e Christopher Hitchens romperam a espessa barreira do politicamente correto e declararam a crença em Deus "um delírio" ou provocadora dos problemas mais medonhos do mundo contemporâneo.

Ou seja, ele consegue ser herói e vilão do mesmo tipo de gente.

Claro: pergunte a respeito de Eagleton a um típico pastor norteamericano do meio-oeste, daqueles cujo sermão ainda confunde marxismo com comunismo, e ele lhe descreverá um sujeito perigoso... até que ouça o britânico defender que a religião pode promover uma elevação ética imprescindível e urgente nesse cenário de barbárie que domina o planeta.
Já se der de cara com a fala conciliadora de Eagleton, um simpatizante do holismo e da metafísica barata pensará nele como um grande sujeito, "iluminado" e lutador contra o "pensamento único", blá, blá, blá. Citará o filósofo a torto e a direito até que leia, por exemplo, "As ilusões do pósmodernismo" (Zahar). Verá ali algumas ironias bem duras direcionadas aos apóstolos dessa "complexidade" de autoajuda.

Apesar de se apresentar tantas vezes como marxista, Eagleton tem o comportamento de um pensador independente, que não se sente compromissado com nenhuma linha, nenhuma coerência apriorística. Nesse sentido, é um exemplo de cientista contemporâneo. Autônomo e honesto.

Mas talvez ele incorra em certa leviandade ao criticar (em grande parte, com razão) a campanha ateísta de Richard Dawkins e companhia. A posição política de Eagleton é inatacável e mesmo gente como eu, leitor voraz do biólogo inglês, reconhece que os ataques à religião às vezes soam picarescos. Agora, uma leitura verdadeiramente atenta ao que Dawkins, Sam Harris, Daniel Dennett, Karen Armstrong, Edward Wilson, Michael Onfrey, Luc Ferry, Bart Ehrmann, Salman Rushdie, Ian McEwan escrevem nos oferece dados consistentes que não deixam a religião tão sossegada assim.

Para começar, Eagleton entende que os ataques dos ateus militantes é contra Deus - o que é até meio ofensivo à categoria intelectual dos seus criticados. Ora, se Deus é uma fantasia para os ateus, a crítica é contra determinadas práticas e posturas da religião - o que é uma coisa completamente diferente. Sem dúvida, a palavra "ateu" está relacionada à negação da existência de um deus ou vários deuses, mas a ação política desses indivíduos tem a ver com as consequências da crença e não do status ontológico do objeto de devoção.

É evidente que a religião tem um papel muito positivo em vários processos de civilização da sociedade. Mas negar a crítica a ela também é desproporcional. Eagleton supõe que a onda ateísta é uma máscara para o ódio contra o povo muçulmano. Ao sugerir a confusão, ele pratica a mágica vocabular que opera o mesmo crime que denuncia. Não há como negar que a tradição religiosa é o único lastro "moral" para que muitos países pratiquem punições e prevenções bárbaras e absurdas, como a castração feminina e a morte por apedrejamento. O caso de Sakineh nem deveria ser alvo de "polêmica". É uma obrigação de qualquer nação acolher uma mulher que foi condenada a morrer apedrejada, não importa que crime tenha cometido.

Pense nas minúcias: um homem tem o direito de morrer apedrejado com os braços livres, capaz, no mínimo, de lutar pela vida enquanto é alvo das pedras. À mulher, claramente tratada como inferior e impura, nem isso: é enterrada até o pescoço. Um ser humano demora entre uma hora e uma hora e meia para morrer enquanto é alvejado.

O esforço para defender a crença em uma entidade abstrata - embora muito importante no imaginário - não pode ser cegar a defesa dos direitos humanos e políticos. Sucumbir a tal relativismo é dar muitos passos para trás. E é terrível que ação política seja confundida com "nobreza" e "respeito" aos costumes alheios.
***
De qualquer forma, é fascinante a forma como Terry Eagleton se posiciona, acendendo o debate, olhando pelas perspectivas que nem sempre são encontradas no senso comum da polêmica. Como diz Gaston Bachelard, o senso comum também afeta a ciência: quando os indivíduos estão muito confortáveis com suas teorias, é hora de aparecer alguém e acabar com a tranquilidade.

Algumas indicações:
Eagleton, Terry. As ilusões do pósmodernismo. RJ: Jorge Zahar Editor, 1998.
Eagleton, Terry. Depois da crítica. RJ: Civilização Brasileira, 2005.
Na Amazon, você consegue comprar o novo e fundamental Reason, Faith e Revolution: reflections on the God debate por menos de 10 dólares na edição impressa (usada) e cerca de 12 dólares na versão para Kindle.

Os livros que Eagleton critica:
DAWKINS, Richard. Deus, um delírio. SP: Companhia das Letras, 2008.
HITCHENS, Christopher. Deus não é grande. RJ: Ediouro, 2008.

sábado, 14 de agosto de 2010

Certas idéias de progresso não são progressistas

Na quinta feira, eu participei de uma mesa sobre pesquisa no Seminário de Comunicação que comemora os 25 anos do curso de Jornalismo da Universidade Estadual de Ponta Grossa. Ao longo da semana, 12 ex-alunos foram convidados para falar de suas experiências, propor caminhos, celebrar a própria formação.
O tema que escolhi me parece muito importante para esse espaço - o problema antes do referencial teórico nas pesquisas - e até gerou algum debate entre os participantes (metade deles não concordava comigo!). Mas vou deixar para uma próxima postagem.
Visitando a cidade, fiquei sabendo que a prefeitura vai passar o trator sobre a tradicional feirinha do bairro São José. A alegação é que, no lugar, será construído um centro de educação infantil. Hoje o S. José é um dos bairros mais nobres da cidade e o espaço ocupado pelos feirante é valioso. A administração pública sabe disso: parte importante do capital dos aliados do prefeito Pedro Wosgrau, que é empreiteiro, vem da especulação imobiliária. Onde hoje poucos feirantes vendem seus produtos, prédios lucrativos podem ser erguidos.
Independentemente de quais são as razões explícitas e implícitas para a mudança, o que gostaria de provocar é uma reflexão sobre a noção que boa parte dos administradores públicos ainda têm de "progresso". Isso tem a ver com nosso espaço, porque ciência e política andam juntas nesse setor. O longo predomínio do funcionalismo como regra da construção do conhecimento se confundiu com a necessidade de erguer o mundo urbano. Boa ciência era a que estava vinculada ao "progresso" desenhado a cimento e tijolo. A valorização das engenharias, como atividade de status, surgiu dessa influência da revolução industrial no desenvolvimento das cidades. Na Idade Média, o que equivale hoje a engenharia era arte servil, não de homem livre. Considerada baixa, pois não dependia só do "espírito". Depois do Renascimento, esses homens práticos passaram a ser valorizados até tomar o lugar principal da elaboração do mundo. Em algum momento da história, o prédio não era mais o suporte da felicidade humana. Ele próprio era o fim! Daí a cultura de arranha-céus que tomou conta de Nova York e Chicago, por exemplo.
Mas isso já não é mais assim. Hoje, qualquer epistemólogo sabe que a evolução de nosso entendimento sobre a transformação da natureza e as próprias consequências da cultura do cimento levou a ciência para outras percepções - para o compromisso, inclusive, com os fenômenos menores, os grupos pequenos, o respeito à memória e à identidade.
Escrevi ontem mesmo, na hora do almoço e apressadamente, um texto sobre isso e mandei para o jornal Diário dos Campos, de Ponta Grossa. Foi publicado hoje - http://www.dcmais.com.br/index.cfm?secao_id=33 Reproduzo aqui:



Se eu pudesse identificar qual é minha memória mais antiga, acho que teria a ver com um cheiro delicioso de frutas e verduras em uma típica manhã fria e ensolarada de Ponta Grossa, colorida por embalagens, toldos e caixas púrpuras. Lembro de pedir pastel de palmito e do constrangimento que minha mãe passava quando, antes de aprender a falar “pimentão” corretamente, eu perguntava se ela compraria “pintão vermelho”.


Toda vez que algo parecido com isso me assalta, mesmo que vagamente parecido, sou tomado de uma felicidade inexplicável. Dá saudade, e nem sempre consigo entender do quê. Nasci na rua Minas Gerais, por isso tenho certeza que essa imagem só pode ser do alvorecer da minha vida. E só pode ter a ver com a Feirinha da São José.

É curioso, na verdade, pois uma emissora de TV falou da Feira como se ela tivesse 15 anos. Eu vou fazer 37 neste ano e tenho certeza que não passei os primeiros quinze pedindo “pintão” na minha salada.

Na verdade, dizer que a Feira tem 40, 15, 10 ou 5 anos não faz mais diferença. Foi decidido que ela não é relevante nem capaz de tornar a vida dos pontagrossenses melhor. Quem quer que tenha decidido tem um entendimento muito curioso sobre felicidade, uma vez que o espaço cultural e afetivo do bairro São José dará lugar a um centro de educação ou, quem sabe, a um portentoso prédio de apartamentos. Ou ainda a qualquer outra construção grande o suficiente para desenhar sombras pelas calçadas.

De um ponto de vista muito popular no século 19, os pensadores da prefeitura têm razão! Os números são indiscutíveis: hoje no máximo quinze feirantes seguram a tradição. As pessoas que freqüentam o lugar não lotariam nem uma modesta zona eleitoral de um bairro bem pouco populoso. Talvez todo o resto do município já esteja bem servido de centros de educação infantil e o tradicional São José, na região mais nobre da cidade, seja prioridade. Talvez o progresso da cidade precise de mais visibilidade e a “limpeza” da área permita que um prédio, símbolo do avanço, cruze os céus e mostre para os visitantes que Ponta Grossa “cresce”!

Para esse tipo de mentalidade, o tempo e essa abstração que chamam de “cultura” não só são irrelevantes como chegam a atrapalhar. Por isso, é melhor desconsiderar ou quem sabe até eliminar esses traços de identidade. Então vamos fazer assim: 40 anos dá uma idéia de familiaridade, de coisa que parece ter acompanhado a infância e a maturidade das pessoas. Faz com que elas sintam uma inútil relação afetiva, ruim para os negócios, ruim para o “desenvolvimento”. Vamos ajudá-las a esquecer essa história toda. A partir de agora, a feira tem 15 anos. Amanhã, quem sabe, a gente lembre que ela tem só cinco anos. Com o tempo, ela nunca terá existido. E todo mundo fica satisfeito.

Essas idéias são realmente excelentes. Pelo menos eram há cem anos! Não há administração pública, ciência ou comunidade no mundo que seriamente pense que o progresso está relacionado com estatísticas, grandes obras públicas ou empreendimentos imobiliários. Essas coisas fazem parte da vida, sem dúvida, mas a história cansou de mostrar que o desenvolvimentismo do cimento não resolve nem a economia, nem a educação, muito menos a felicidade.

Por isso, me sinto menos preocupado com minha hibernação. Se eu passei quinze anos no estágio mais néscio da minha infância, balbuciando pintão no lugar de pimentão, os “empreendedores” que decidiram, unilateralmente, desconsiderar a importância da Feirinha da São José, estiveram crinogenizados desde a revolução industrial.

Freud diz que falar é trazer à consciência. Escrever esse texto parece ter me ajudado a esclarecer a misteriosa saudade que a Feirinha me provoca. Sinto falta de Ponta Grossa. Sensações como essa não são apenas luxos íntimos. São elas que nos trazem de volta, que nos chamam para retribuir ao nosso berço, ajudar nossa cidade a crescer (não apenas para cima). É esse senso de comunidade, esse sentido de pertencimento, que esperamos do lugar que nos referencia. Já usei esse trecho de As Cidades Invisíveis, de Calvino, centenas de vezes, mas não deixo de admirá-lo. Diz Marco Pólo a Kublai Khan, que lhe perguntava o que tinha visto de mais extraordinário no vaso império que visitara: “O que podemos esperar de uma cidade não são suas 7 ou 77 maravilhas, mas as respostas que ela dá a nossas perguntas”. A Feira tem respostas importantes para mim. Para você, não tem?

terça-feira, 10 de agosto de 2010

O que é um problema de Comunicação?

A Comunicação é um campo de pesquisa que, se encarada como ciência autônoma, dá ainda os primeiros passos. Naturalmente, suas principais fontes são de outras áreas, interessadas em problemas para os quais a mídia é só parte do processo. Os “pais fundadores” do ramo, ocupado primeiramente pelos fenômenos de massa proporcionados pelos meios de comunicação, são sociólogos, psicólogos, filósofos, linguistas. Daí que, no passado recente, Laswell, Shannon, Wiener, Morin, Saussure, etc. eram as fontes inalienáveis. Hoje, um rápido passeio pelos artigos apresentados em eventos de comunicação mostra que as contribuições de Bourdieu e Deleuze estão para bibliografia do campo tanto quanto Freud e Lacan para a de psicanálise.


O esforço de adaptação da bibliografia corrente (por exemplo, deslocar o paradigma indiciário da micro-história para a investigação sobre produtos da mídia ou retirar do método etnográfico elementos para estudar a circulação da notícia) é parte importante do desenvolvimento de uma ciência. Mas o momento histórico apronta outra dificuldade: a luta pelo status de disciplina autônoma não seria anacrônico? Parte dos epistemólogos acredita que os limites entre as áreas são cada vez mais nebulosos e o estabelecimento de “franquias” já não daria conta de compreender os objetos. Estes defendem estudar a Comunicação transdisciplinarmente ou entendê-la como “interdisciplina” (Bougnoux, 1999) – alguns animados também pelo que seria uma “oportunidade histórica”: a de tornar a área modelo de um novo paradigma científico.

À parte da polêmica, algumas ideias parecem consensuais (ou próximas) e talvez ajudem a iluminar os parâmetros mais comuns para se definir o que, afinal, é problema da comunicação – mesmo que se parta de um referencial teórico alheio ao campo.

1) Ainda que aceitemos a Comunicação como parte das Ciências Sociais ou Humanas, talvez seja prudente ultrapassar as definições, hoje referenciais, eleitas por Piaget (1976): nem nomotética, histórica, normativa ou filosófica, mas interpretativa. Isso quer dizer que a Comunicação não procura leis universais, conceitos abstraídos em fórmulas, especulações metafísicas ou releituras do percurso histórico da área. Cada objeto carrega em si “verdades provisórias” a serem desentranhadas pelo ângulo escolhido e explicitado pelo pesquisador. É provável que essa vocação seja a principal responsável por uma tendência cada vez mais dominante de pesquisas empíricas (como nos mostra Maria Immacolata Vassalo de Lopes, 2010).

2) Desde que, em 1939, uma audiência estimada em 40 milhões de norte-americanos acreditou na invasão de marcianos por conta da famosa transmissão radiofônica de Guerra dos Mundos, o papel dos meios de comunicação de massa se tornou um dos problemas centrais na compreensão da sociedade (* aí embaixo está a primeira parte de um documentário sobre o evento! Aqui,cortesia de Sofia Burakowski, o link para o programa original, narrado por Orson Welles: http://www.4shared.com/file/h1fDVKDi/Orson_Welles_-_War_of_the_worl.html). De lá para cá, a perspectiva sobre a mídia passou de suporte persuasivo dos conteúdos (teóricos da “Agulha Hipodérmica” [Laswell e Lazarsfeld, 1978]; Escola de Chicago [Gastaldo, 2009], etc.), transformadora da sensibilidade humana (Wiener, 1973; Mcluhan, 2002; Levy, 2002) a articulação central das mediações sociais (Palo Alto [Braga, 2004] e Estudos Culturais; Goffman, 1998; Rodrigues, 2009) ou sistema autônomo e inexpugnável (Luhmann, 2005) e, finalmente, elemento “atravessador” de todos os campos contemporâneos – para além, inclusive, dos próprios meios (Verón, 2000; Mata, 2005; Martin-Barbero, 1988, 2008, etc.). Nesta última fase são comuns, nos trabalhos de muitos pesquisadores, expressões como “ambiência midiática” (Gomes, 2006), “mediatização” (Braga, 2007) ou “midiatização” (Ferreira, 2008, 2010 ).

3) Vista dessa forma, a influência da mídia na construção da realidade é um “movimento” ou um “processo”. Caberia ao investigador compreender, por exemplo, como ocorre essa transformação e como os protocolos da mídia modificam os protocolos dos outros campos (como a religião se adapta aos dispositivos midiáticos, de que forma a telenovela agenda determinadas ações sociais, o que a web faz com as sociabilidades, etc.).

4) Disciplina, interdisciplina, transdisciplina ou apropriação das Ciências Humanas e Sociais, a Comunicação se justifica como campo autônomo de conhecimento justamente por causa do evidente fenômeno da mediatização (ou midiatização). É verdade que, por ora, as angulações de pesquisa parecem se firmar em três pilares “estrangeiros”: a semiodiscursividade, a perspectiva antropológica/sociológica e as questões tecnossimbólicas (Ollivier 2010), de onde saem as principais referências metodológicas (respectivamente, semiótica/análise de discurso, estudos culturais/mediações e midiologia/estudos da web, etc.). Sendo assim, a adaptação contínua dos procedimentos inspiradores vai desenhando a ciência comunicacional. O “nosso” problema é o papel do dispositivo midiático nos inúmeros panoramas em que está inserido.

• BOUGNOUX, Daniel. Introdução às ciências da comunicação. Bauru: Edusc, 1999.

• BRAGA, José Luiz. Mediatização como processo interacional de referência. In: Médola, Ana Sílvia; Araújo, Denize Correa e Bruno, Fernanda (orgs.). Imagem, Visibilidade e Cultura Midiática, p. 141-167. Porto Alegre, Sulina, 2007.
• BRAGA. Adriana. Comunicação e transdisciplinaridade – na trilha de Palo Alto. Artigo apresentado no XVIII Compós. São Bernardo do Campo (SP), 2004.
• FERREIRA, Jairo; PIMENTA, Francisco José e SIGNATES, Luiz. Estudos de comunicação: transversalidades epistemológicas. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2010.
• FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. SP: Cadernos PUC, 1974.
• GASTALDO, Édison e BRAGA, Adriana. O legado de Chicago e os estudos de recepção, usos e consumos midiáticos. Trabalho apresentado no XVIII Encontro da Compós, na PUCMG, 2009.
• GOFFMAN, Irving. A representação do Eu na vida cotidiana. Petrópolis: Vozes, 1998.
• GOMES, Pedro Gilberto. Filosofia e ética da comunicação na midiatização da sociedade. S. Leopoldo: Editora Unisinos, 2006.
• LASWELL, Harold. A estrutura e a função da comunicação na sociedade. IN: Cohn, Gabriel. Comunicação e Indústria Cultural. SP: Editora Nacional, 1978.
• LAZARSFELD, Paul e MERTON, Robert. Comunicação de massa, gosto popular e ação social organizada. IN: Cohn, Gabriel. Comunicação e Indústria Cultural. SP: Editora Nacional, 1978.
• LEVY, Pierre. A inteligência coletiva. SP: Loyola, 2002.
• LOPES, Maria Immacolata Vassallo de. Reflexividade e relacionismo como questões epistemológicas na pesquisa empírica em comunicação. IN: Braga, J. L., Lopes, M. I. V. e Martino, Luis Cláudio (orgs). Pesquisa empírica em Comunicação. SP: Editora Paulus, 2010 (no prelo).
• LUHMANN, Niklas. A realidade dos meios de comunicação. SP: Paulus, 2005.
• MALDONADO, Alberto E. A perspectiva transmetodológica na conjuntura de mudança civilizadora em inícios do século XXI. Em: MALDONADO G., Alberto; BONIN, Jiani Adriana e ROSÁRIO, Nísia Martins (org). Perspectivas metodológicas em comunicação: desafios na prática investigativa. João Pessoa: Editora Universitária da UFPB, 2008.
• MARTIN-BARBERO. Jesús. As formas mestiças da mídia. IN: Pesquisa FAPESP, n. 163, setembro de 2009.
• MATA, Maria Cristina. Los médios massivos em el estúdio de la comunicación/cultura.. Revista Conexão – Comunicação e Cultura/ Universidade de Caxias do Sul, p. 13-22. V. 4, n. 8, jul./dez. RS: Educs, 2005.
• OLLIVIER, Bruno. A ciência da comunicação como interdisciplina. Seminário para o PPGCOM da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) em 21 de junho de 2010.
• PIAGET, Jean. A situação das ciências sociais do homem no sistema das ciências. Lisboa: Bertrand, 1976.
• RODRIGUES, Adriano Duarte. Estratégias da Comunicação. Lisboa: Editorial Presença, 1990.
• VERÓN, Eliseo. Espacios mentales. Barcelona: Gedisa, 2000.
• WIENER, Norbert. Cibernética e sociedade: o uso humano de seres humanos. SP: Cultrix, 1973.

domingo, 8 de agosto de 2010

Não é sobre Popper

Tenho uma pequena experiência com Karl Raymond Popper (1902-1994) que oferece alguns elementos exemplares da forma como nos aproximamos da ciência.

Veja se o Popper não lembra o Adrian Monk!
Há uma dimensão das próprias idéias do filósofo austríaco – a crítica ao subjetivismo, a autonomia do mundo do conhecimento, a lucidez quanto aos limites da ciência, etc. – mas há, também, o panorama do comportamento intelectual de Popper e dos pensadores que dialogam, direta ou indiretamente, com ele – e isso inclui a qualidade da escrita, a honestidade, o reconhecimento e a (respeitosa) divergência que caracteriza a construção do saber.

Quando me debrucei sobre “Conhecimento Objetivo” fiquei tão encantado com a habilidade de argumentação de Popper que, conseqüentemente, passei a incluir o assunto em todas as conversas. Até que uma colega advertiu: “credo, que cara mais direita!” Eu já sabia que Popper é, muitas vezes, associado a uma compreensão “conservadora” da ciência, imagem talvez em parte constituída pelo estilo do filósofo: irônico, objetivo, crítico de qualquer sentimentalismo que porventura assalte a discussão.

Por outro lado, Luiz C. Martino, em um dos textos incluídos no livro “Epistemologia da Comunicação”, organizado por Maria Immacolata Vassalo de Lopes, tratou de uma “decepção”: um debate que “não houve” entre Adorno e Popper. O motivo parece ser o mesmo pelo qual minha amiga “reprova” Popper: Adorno estava interessado em levar o debate para um campo “extracientífico”. O filósofo frankfurtiano alegava que “a produção do conhecimento se encontra intrinsecamente determinada pelo conflito de interesses sociais e, consequentemente, o conhecimento seria apenas uma extensão e um desdobramento dos interesses aí presentes” (Martino, 2003: p. 70). Adorno, enfim, desautorizava Popper, identificando-o com posicionamentos políticos reprováveis.

Eu escrevi “por outro lado” porque Martino se mostrou solidário a Popper, mesmo reconhecendo que a posição do austríaco, paladino da ciência, não seja mais defensável que qualquer outra. “Ela também terá suas brechas, seus pontos de inflexão e obscuridade”, diz o Martino. Mas a recusa de Adorno, como argumenta o professor da UnB, torna qualquer evolução impraticável. É preciso, ele diz, “criar condições para que um debate epistemológico seja possível”.

Nos seus textos, Popper adota um discurso direto e sem afetações. Ele tem um qualificativo nada elogioso para o método das sensações e observações, caro a filósofos como Hume e Kant na chamada Ciência Moderna: “asneira subjetiva” (Popper, 1975, introdução: p. 7) e não se inibe de reivindicar que “resolveu o problema da indução” (p. 13- 14). Ao mesmo tempo é generoso tanto no esforço para se fazer entender (o estilo é “limpo” e didático) quanto no reconhecimento do trabalho até dos colegas que critica (ao refutar a “crença na crença” de Hume, trata-o como “uma das mentes mais racionais que já houve” [p. 16]).

Reconhecer a contribuição de Popper (citada por muitos filósofos, de diversas e contraditórias correntes de pensamento, como “imensa”) não tem a ver com simpatia nem mesmo com política – no sentido ideológico “forte” (na divisão sugerida por Norberto Bobbio) – mas com um esforço coletivo e construtivo do conhecimento. Cada época, cada lugar de fala, cada instituição, precisa mediar sua compreensão do mundo com suas conjecturas, com suas circunstâncias de inteligibilidade. Isso representa entender que nossa capacidade de descortinar o universo é limitada e sujeita ao escrutínio do tempo e da vigilância epistemológica (como diz Bachelard). Não há como desprezar o ambiente tecnológico, cultural, político da época em que interpretamos o conhecimento (aparentemente, até mesmo Thomas Khun negligenciou esses fatores ao identificar seus “paradigmas”). Mas é preciso se ter em mente que toda e qualquer contribuição sobrevive à época e ao pesquisador. Ela se torna parte de um acervo, independente de nossas sensibilidades (políticas, inclusive); torna-se o Mundo Três – para usar a expressão do próprio Popper.

Essas reflexões me fizeram compreender que o ponto crítico da epistemologia, seu “desafio interno” mais premente, é pensar a construção em duas dimensões nem sempre articuladas entre si: o compromisso com o humano, com as necessidades dos homens e mulheres, com a identificação histórica, cultural, geográfica; e com o trabalho coletivo e complexo, além de nossos próprios limites e nosso próprio tempo lógico, que leva o progresso da humanidade para além das casualidades de nossa existência.
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  • POPPER, Karl. Conhecimento Objetivo. SP: Itatiaia, 1975.
  • MARTINO, Luís C. As epistemologias contemporâneas e o lugar da Comunicação. Em: LOPES, Maria Immacolata Vassalo Lopes. Epistemologia da Comunicação. SP: Loyola, 2003.
  • BACHELARD, Gaston. Epistemologia. Lisboa: Edições 70, 2010.
  • KHUN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. SP: Perspectiva, 2001.
  • BOBBIO, Norbert. Direita e esquerda. SP: Unesp: 2001.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Hoje seria o dia do comercial de margarina

Hoje começam as aulas de Teoria da Comunicação neste semestre. É um dia que, tradicionalmente, veteranos aparecem na sala do primeiro período para se divertir com a reação dos calouros a uma história que estou batizando agora de "O que um comercial de margarina pode nos dizer sobre o sentido da vida", para parodiar os acachapantes livros mais vendidos de todas as semanas.

Mas, para falar a verdade, eu mesmo não aguento mais essa história. Então hoje não teremos a trajetória da virginal adolescente que consuma seu matrimônio no mais perfeito dos sonhos.
Ao invés disso, tentarei explicar o desenho abaixo:


Entendo. É como se você trocasse o instrutivo, moralmente edificante e agradável livro "Jesus de Gravata", de Marcelo Peruzzo, por uma abstração do tipo "O fetichismo na música e a regressão da audição", de Theodor Adorno.

Ou se perdesse a promoção de férias para adquirir "O que um comercial de margarina pode nos dizer sobre o sentido da vida" e tivesse que aturar, como componente da Cesta Cultural, a obra: "A interação dos indivíduos e das instituições em face da mediatização da sociedade".

Claro, é mais ou menos sobre isso que o esquema aí de cima, de argentino Eliséo Verón, trata.

***
Falando em Cesta Cultural: no dia 19 de agosto, às 19 horas, a egressa de Jornalismo da UniBrasil, Anna Azevedo, lança na faculdade o livro "Dinamite", resultado do seu trabalho de conclusão de curso, orientado pela professora e coordenadora Maura Martins.

A reportagem reconstrói uma das tragédias mais famosas de Curitiba, ocorrida em 1976: a explosão de uma carga de dinamite no bairro Juvevê. À moda de John Hersey, em Hiroshima, Anna reconstrói minuciosamente o dia das pessoas que foram afetadas pelo acidente.

É a segunda publicação, no espaço de um ano, de livros que surgiram de projetos de conclusão de curso de Jornalismo na UniBrasil. Somados à crescente participação de recém-formados em disputados trainnés pelo país, presença constante na premiação do Sangue Novo, a vitória no programa Desafio da Notícia, da Band, e o ingresso imediato de nossos alunos em cursos de pós-graduação - a última, em primeiro lugar no Mestrado em Comunicação da Universidade Federal do Paraná - pode-se dizer que o esforço dos alunos e dos professores tem frutificado.

Os estudantes que começaram na segunda-feira tem um privilégio e uma responsabilidade. Seja através do Jesus de Gravata ou dos herméticos estudos sobre o impacto dos meios de comunicação na sociedade, sair-se bem no jornalismo contemporâneo é muito mais do que aprender técnicas prontas de difusão.

domingo, 1 de agosto de 2010

A expressão "contrabando"

A idéia de contrabando surgiu logo que comecei a investir no tema do meu doutorado.

Fui aceito no programa de Ciências da Comunicação animado com leituras que têm pouco ou nada a ver com mídia. Nos seis meses que antecederam o ingresso na Unisinos, minhas estantes foram inchando com biologia e filosofia evolucionista. Havia me encantado com autores darwinistas e um sintoma inevitável foi acompanhar o barulho que entidades e atores religiosos faziam toda vez que um livro de Richard Dawkins ou Sam Harris aparecia entre os mais vendidos.

Ao mesmo tempo, a disputa simbólica entre believers e non-belivers (acho que crentes e descrentes já significam outra coisa: “crente”, no Brasil, virou uma referência preconceituosa a evangélicos) me deu um ânimo político que havia tempos não sentia. Sou professor e pesquisador, não posso me dar ao luxo de esquivar-se do debate. Por isso eu me posicionei publicamente sobre o assunto, e minha trajetória intelectual, sentimental e social me colocou no lado mais apedrejado.

Ao iniciar um estudo sistematizado e me aprofundar na leitura que representa a “mídia” na equação, minha pura militância foi (felizmente) minguando em troca de um interesse cada vez maior no enorme mistério que é, ainda, a forma como pessoas e entidades se transformam conforme os protocolos da mídia.

Minha sorte é que, antes de eu colocar os autores da Comunicação no topo da minha lista, mergulhei nos estudos de religião (nos limites que um neófito dá conta, claro), desde aspectos teológicos até a controversa história dos mitos que envolvem, principalmente, as três grandes monoteístas. Para se ter uma idéia, adquiri outras duas bíblias, além de uma que eu já tinha (e ganhei uma Bíblia de estudos da Queila, minha aluna ultra-believer que gentilmente se preocupa com o destino da minha alma).

Por causa dessas aproximações, me ocorreu que a religião cristã, por exemplo, sobrevive há dois mil anos apesar das inúmeras incongruências, contradições, crises e tensões pelas quais passa. Sem dúvida, é uma instituição muito sólida. É verdade que o cristianismo é muito recente na História para se vangloriar de ter passado do estágio de observação, mas pelo menos na nossa época, não há pedofilia, dinossauros, templos misteriosamente incendiados, guerras, machismo, homofobia ou coerência lógica que abalem suas estruturas mais profundas.

Mesmo assim, a mídia faz muita diferença para a religião. Muda seu comportamento, agenda suas estratégias e influencia até mesmo a teologia. Para boa parte dos cristãos, especialmente adeptos de importantes seitas evangélicas, a mídia é demoníaca, um instrumento de corrupção moral e um antro liberal dominado por gays, defensores do aborto, dos direitos das mulheres e de uma liberdade de expressão perigosa.

Essas mesmas seitas, quase cem por cento delas, possui programas de televisão, websites, jornais ou outros mecanismos mediáticos. Melhor do que isso: uma visita à maioria dos templos e igrejas é suficiente para que percebamos que os protocolos da mídia são praticados até quando não há dispositivos midiáticos no ambiente. O pastor fala com seus fiéis como em um programa de auditório, as frases de efeito, espontaneamente gritadas pela assembléia, são as mesmas que ouvimos em filmes hollywoodianos ou na nova onda de canções gospel (cujos intérpretes, aliás,  não parecem nada constrangidos por adotar os ritmos e atitudes da moda, mesmo que sejam o erotizante funk carioca ou uma paródia de rock satânico).

Só que a mídia também se protege – se autofortifica – e mantém estratégias para impedir uma livre circulação de mensagens religiosas. Para praticar proselitismo, um cristão precisa freqüentar o espaço já rotulado, ou seja, os programas e veículos claramente delimitados como religiosos. Isto é, convencer quem já está convencido. Naturalmente, é pouco. É preciso “invadir” espaços além-fronteiras e “espalhar a mensagem”. Mas como fazer isso?

Foi quando comecei a prestar atenção na estratégia dos “atletas de cristo”. No meio de uma entrevista, na comemoração de um gol, no agendamento das atividades extra-esportivas... O repórter pergunta sobre o jogo e o jogador inclui Deus na resposta; o atacante marca um gol, corre para a câmera e levanta o uniforme para mostrar uma camiseta onde se lê “I belong to Jesus”, sua assessoria de imprensa distribui releases falando da paixão do atleta por determinada banda gospel...

O ator, portanto, transporta para ambientes distintos idéias sobre as quais não foi convidado a falar. Ele “contrabandeia” a Palavra.

Claro que o conceito de contrabando não serve só para a performance religiosa no espaço público. Todos nós somos contrabandistas, pois, por mais que se fale do desaparecimento das fronteiras entre os campos sociais (uma mistura de tudo, em que não sabemos onde começa um campo e termina outro), a própria linguagem faz o papel de estabelecer limites. Ora, uma cadeira se chama cadeira porque não é mesa – mesmo que possamos usar uma cadeira como mesa e vice-versa.

Nesse ínterim, tive a oportunidade de iniciar a orientação de três trabalhos de conclusão de curso sobre religião, dois deles pesquisados por alunos que se assumem bastante religiosos. Desse pequeno e valioso grupo, expandi a idéia para, sobretudo, calouros de Jornalismo e Publicidade/Propaganda. Somos em pelo menos dez, no momento, e os interesses de meus orientandos são tão diversos quanto inusitados. O que os une é o problema conseqüente das hipóteses que comecei a levantar: como estudar um processo de Comunicação sem se orientar exclusivamente por métodos consagrados por outras disciplinas (como a Sociologia e a Psicologia, por exemplo)? Para responder essa pergunta é preciso abraçar a mais nobre das áreas filosóficas, a epistemologia – a ciência que descortina o modo como construímos conhecimento.

É por onde deverá andar esse blog, além de servir de suporte para atividades nas disciplinas que ministro, intimamente relacionadas com a problemática: Teoria da Comunicação, Análise de Discurso e Seminário de Pesquisa.

E prometo textos menores...