sexta-feira, 17 de setembro de 2010

O monotrilho de Springfield

Em um dos episódios mais memoráveis dos Simpsons, a prefeitura de Springfield usa uma enorme quantia dos cofres públicos para instalar na cidade um trem de superfície caríssimo: basicamente inútil e perigoso. Ironicamente, na cena final um narrador comemora que a população aprendeu sua lição e jamais gastaria o dinheiro público com projetos absurdos novamente. Mas a imagem que vemos é de uma enorme escada rolante que não leva a lugar nenhum.
Pois bem.
O horário eleitoral tem nos mostrado candidatos a deputado que parecem perfeitos para disputar a eleição... em Springfield!  Entre os proponentes à Assembléia ou à Câmara, há alguns que merecem nossa especial atenção.
O meu favorito é um dentre dezenas de "candidatos cristãos" que nesse ano resolveram vincular suas campanhas a causas evangélicas. Sua principal proposta é a construção do "maior monumento da Bíblia no mundo".
Há uma poesia nisso: imagino que o monumento não será legível como livro; deverá conter, no máximo, meia dúzia de palavras com chavões proselitistas e o nome dos políticos envolvidos na "obra". Ou seja, perfeito para um país que ainda tem 14 milhões de analfabetos entre seus adultos.
Mas não são apenas com obras cósmicas que sonham nossos candidatos. Eles também têm o que consideram "propostas": "contra o aborto", "pela pena de morte a estupradores", "pela família brasileira" (que é um eufemismo para "contra o casamento gay!")...
Não estou aqui criticando a posição dos religiosos sobre esses assuntos (se empenhar na pena de morte, contra pesquisas genéticas, contra a liberdade da mulher e das conquistas de gênero é um retrocesso, mas devemos reconhecer e defender o direito de que todos lutem pelas suas convicções), estou notando que a agenda de interesse desses grupos parece residir num mundo que não é o que eu vivo.
Mais de 40% da população brasileira não tem água encanada e esgoto.
E um candidato manda uma corrente pela internet pedindo que as pessoas boicotem um filme ficcional que trata Jesus como gay. Aliás, pior que isso. Pedindo que se assine uma lista solicitando que o filme seja PROIBIDO no país.
E milhares de crianças nem chegam à escola porque os pais não conseguiram fazer registro de nascimento.
Os problemas de trânsito, poluição e desperdício são cada vez mais emergenciais. Qual é a proposta dos candidatos para isso?
Bom, talvez não seja prudente falar em "trânsito", pois alguém pode aparecer com um monotrilho luxuoso como solução...
A mídia tem evidente parcela de culpa nisso. O que vem sob a tag de "política" no noticiário, em geral se resume a exploração de escândalos fragmentados e desproporcionais. Quando se fala de "ética", considera-se meramente notícias de crimes ou supostos crimes.
É cedo para dizer, mas suspeito que a cobertura das eleições passadas foi muito mais madura que a atual. O que aconteceu para que o jornalismo desse um passo para trás? Condescendente, relativista, incapaz de se envolver em qualquer polêmica verdadeira, a mídia é um reflexo da própria atuação dos candidatos: severamente anti-intelectual, pobre e proselitista.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Sangue, barro, pó, cicatrizes... o motivo de ser jornalista

Mergulhar no pó, no barro, na sujeira; afastar os galhos que ricocheteiam e deixam cicatrizes nas canelas, no rosto, no pulso; sentir o cheiro vívido do sangue e da gasolina, esfregar automaticamente os olhos ardidos com a fumaça...

É por isso que escolhemos o jornalismo.

A cada dia mais me convenço que uma intuição ancestral, um meme, um rastro deixado longiquamente por ancestrais dedicados a mapear o trajeto de suas caças é o ânimo oculto que nos empurra para a profissão.

De alguma maneira, a prática do jornalismo parece um amálgama entre a necessidade pré-histórica de decifrar os movimentos inusitados da natureza e a contemplação vicária decorrente da invenção e popularização da imprensa.

O jornalista narra e publica. Ao publicar, devolve sua solução dos enigmas investigados a nova apreciação. Ele narra como os caçadores paleolíticos, que eram capazes de reconstituir a epopéia de uma capivara por pegadas, galhos quebrados, ossos, buracos, pelos...

O jornalismo remonta uma tradição de compreender o mundo que sucumbiu ao predomínio da ciência galiléica, a da experiência. As matérias não são, nem nunca serão exatas: elas são fruto da impossibilidade de simplificação e normatização. Um acidente rodoviário não representa todos os acidentes; um político não é o mínimo múltiplo comum de todos os seus pares.

No entanto, outra tradição, a da conformação industrial, é também resultado direto de uma cultura muito sólida e enraizada na sociedade urbana. Embora mais recente, essa cultura nos preenche e nos exige, é até mesmo naturalizada em nossas ações. Ela é filha do pensamento cartesiano e fundada, claro, no paradigma de Galileu.

Por isso, encurtamos e esticamos nossas abduções, nossas conjecturas, em formatos paradoxalmente fechados, utilitários, otimizados, previsíveis. Falamos do momento único e peculiar (sempre tratamos do único, não importa que seja a 100ª matéria sobre corrupção ou buracos na vila) mas traduzimos em fórmulas, limites de caracteres e clichês de linguagem. O que chamamos de “estilo jornalístico” ou “padrão editorial” jamais passa de uma Cama de Procusto.

O jornalismo é ou não é um índice vivo do problema epistemológico das Ciências Humanas e Sociais?

Talvez nosso parentesco mais próximo não seja com os primos Direito, História e Literatura, com quem dividimos algumas pretensões éticas e intelectuais. Provavelmente seja com a Medicina.

Assim como os médicos, fazemos diagnósticos baseados em sinais fornecidos pela realidade. Também erramos na maioria das vezes. Assim como eles, conquistamos prestígio e ódio da sociedade com sazonalidade impressionante.

A medicina ganhou um prestígio que ainda não conquistamos, talvez porque nascida de uma confusão entre misticismo e ciência. A palavra conjectura praticamente vem à luz com Hipócrates. O diagnóstico é uma análise das "conjecturas". E não é a toa que sua origem latina esteja relacionada com “adivinhação”.

O jornalismo, por sua vez, nasce na sociedade cínica da técnica, da produtividade, dos números. Ninguém nunca acreditou, em nenhum período da história, que nossas compreensões relatadas da realidade eram fruto de clarividência. A narração se resume a nós, sem deuses ou invocações sobrenaturais, nossas escolhas de como olhar e o que relatar, o próprio relato, o dispositivo de interação e, finalmente, quem nos interpreta. 

No meio do circuito, muita educação semiótica se processou. O público da modernidade, já se disse, é semiótico: ele não só pondera a realidade, como as ferramentas que lhe mostram a realidade.

Então por que ser jornalista, esse artesão da esquizofrenia?

Talvez não tanto por causa dos fins – mostrar, denunciar, esclarecer, tecer a esfera pública, essa ambição ética e cosmológica  – mas pelo prazer da própria prática.

Queremos estar lá, no meio da confusão e dos galhos partidos, de joelhos no barro coletando as pistas que nos levarão, quem sabe?, à resolução final. Somos testemunhas com todo o corpo, não apenas com os olhos e ouvidos.

**
Esse texto surgiu da enésima leitura de um artigo maravilhoso de Carlo Ginzburg chamado Chaves do mistério: Morelli, Freud e Sherlock Holmes, incluído na coletânea O signo de três, organizada por Umberto Eco e Thomas Sebeok (Perspectiva), mas também presente com tradução diferente em um livro do próprio Ginzburg, Mitos, Emblemas, Sinais (Companhia das Letras). Não deveríamos sair da faculdade sem estudar minuciosamente esse trabalho (inclusive por razões motivacionais).