quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Frio na Espinha: Alguém sempre olha os seus pecados


* Publicado no Jornal União, edição 395, terceira semana de agosto.


Não sabe se foi amor ou se foram os hormônios da juventude. Lá no mato, a adolescência chegava na companhia dos primos, todos muito pequenos ou muito velhos, e dos irmãos. Joaquim era um ano mais novo, 13, e era o mais bonito da casa. Logo perderam a virgindade no mesmo colchão que dividiam desde a infância. Ela engravidou seis meses depois.

Os três primeiros filhos nasceram com severas doenças físicas e mentais. O que durou mais foi até os cinco anos. Levina, ela mesma filha do casamento entre primos do primeiro grau, simplesmente não falava sobre o motivo. Os parentes mais velhos morrendo, os mais novos apagando o tabu aos poucos na memória.

Ela se convenceu de que teria um filho de Joaquim e que seria perfeito, forte como o pai, obstinado como a mãe. Um dia, uma tia velha veio visitar a família no barraco pendente num morro do Taquari. Pela primeira vez, alguém falou sobre o assunto. Levina tentou não escutar, mas o que a velha Zezinha intentava não era condenação, mas ajuda. “Tem um óme, lá no Ribeirão Grande, que faz uns trabaio…”

O homem era o Pai Noco, de quem Levina ouvira histórias na infância. Falavam de um dos filhos de Noco, Evandro – que sobreviveu à misteriosa doença ceifadora dos irmãos, mas marcado por uma estupidez cordial, um arrastar de pernas pelas ruelas da comunidade, uma parvalhice que lhe impedia de trabalhar, mesmo passado dos 35 anos. Por um motivo misterioso até agora para Levina, Noco era temido pelas autoridades e, com isso, arrumou um emprego público para Evandro, um cargo de “subprefeito” de Ribeirão Grande.

O fato é que Noco garantiu a sobrevivência do filho, seja como for, embora Zezinha explicasse, com todas as letras, que a moléstia daquela família tinha a mesma origem dos infortúnios de Joaquim e Levina. A mulher de Noco, trancafiada num celeiro a vida toda, longe dos olhos curiosos da vizinhança, era também irmã de seu marido.  Morrera de depressão, dizem à boca pequena. Levou para a cova parte dos segredos arrepiantes de Ribeirão Grande.

Levina foi até a casa de alvenaria, maior do que as lidas de Noco sugeriam proporcionar, fincada numa chácara imponente em meio à pobreza dos vizinhos. Ele a recebeu com os olhos baixos. “Zezinha me disse que viria. Devo favor para ela e só por isso aceitei te ouvir”. Ela então desandou a falar. Nem tomou cuidado com os assuntos proibidos.  Quero um filho como o seu, foi a frase final. Estava na cabeça dela: Evandro é retardado, mas o que é a inteligência? Ele tem cargo importante e até mesmo atrai a cobiça das meninas, interessadas em ser, quem sabe, “sub-primeira-dama”. Se o filho de Levina alcançasse tal êxito, sua vida salpicada de preconceito e culpa alcançaria recompensa, afinal.

Noco disse que seria difícil. Perguntou se ela estaria disposta a qualquer coisa.

Sim, sim, sem dúvida! Qualquer coisa. Do seu ventre sairam filhos de seu irmão, pregados na pouca vida por sofrimentos inimagináveis. Seu coração estava transbordante de pecado. Outro sacrifício diabólico seria pequeno espocar nas chamas da sua condenação. Em troca, traria pelo menos uma criança à luz, um vivente destinado a reinar em seu mundo, seu restrito mas verdadeiro mundo.

“Traga os olhos da dona Zezinha”. As vozes das almas infantis atrofiadas se silenciaram na cabeça de Levina. Aquele gemido dos filhos que nasceram com as vísceras para fora, com a cabeça dividida em duas, aquelas imagens monstruosas que se formaram no chão sujo de seu barraco, arrancados pela parteira horrorizada. Um silêncio para decidir, sem titubear. Ela apertou as mãos e aceitou. As vozes voltaram lentamente, mais lamentosas, mais desesperadas. Tornaram-se gritos quando, ao sair da casa, encontrou Evandro à porta, olhar morteiro, sem dizer uma palavra.

Naquela noite, Levina foi até o sofá, onde Zezinha dormia e fez o que tinha que ser feito. Enfiou uma fronha na garganta da velha e, usando um faca de serra e uma colher, tirou os globos ensanguentados. Nem imaginava como cuidar da mulher depois de cavar os buracos no seu rosto. Não precisou. A hemorragia veio como avalanche e a fraqueza dos 75 anos bastaram para que a vida de Zezinha não durasse mais que poucos minutos.

Livrar-se do corpo, tarefa para depois. Era urgente levar o fruto do crime para Noco. Ele a recebeu cabisbaixo, novamente, e pediu que esperasse em casa. “Terei trabalho lá”, ela disse. Noco levantou a mão, interrompendo: “Não se preocupe, Evandro resolve”. Quando voltou para o casebre, não havia sinal da cena dantesca que havia acontecido horas antes.

O tempo passou e Levina engravidou novamente, mesmo com os protestos de Joaquim, que nada sabia do lúgubre acerto e nem se preocupava mais com o misterioso sumiço da tia naquela noite meses atrás. A gravidez foi um pesadelo de nove meses. Levina sonhava todas as noites com o rosto emburacado de Levina. Mas o som dos bebês na sua cabeça desaparecera.

Veio o nascimento, em casa, feito pelas mãos de uma parteira muda, de pele escamada, indicada por Noco. Levina desmaiou e só voltou a enxergar a luz do dia horas depois. Joaquim foi a primeira imagem no seu despertar. Ele estava com o rosto petrificado. “O bebê não sobreviveu?”, ela gritou. Sim, disse Joaquim, sobreviveu. E está bem de saúde… Porque ele não sorria, então? Uma mulher desconhecida apareceu às costas do marido e disse que todos estavam muito abalados por causa de outra notícia.

“O filho do Noco, Evandro, morreu na mesma hora que seu filho veio ao mundo. Foi um acidente muito feio… um galho de árvore voou em direção aos olhos do rapaz e… é melhor não falar nisso”. Confusa, Levina tentou se concentrar no seu próprio bebê. Pediu por ele. A mulher estranha deu as costas e saiu. Joaquim titubeava. O medo passou a ocupar a confusão mental. “Traga meu bebê!”

O marido saiu do quarto e, pela fresta da porta conseguiu ver o berço, velho e descascado, marcado das unhas das crianças que sofreram ali. Joaquim voltou lentamente, tentando evitar, de algum modo, que Levina visse o que tinha sob o coeiro. Desajeitado, virou a criança um pouco antes que o planejado. O brilho opaco da janela iluminou o pequeno rosto. Levina tentou não acreditar no que via. Desmaiou em seguida.

O bebê era perfeito, com os traços idênticos àqueles que os pais tinham em comum. As linhas herdadas do sangue. Mas não tinha boca. No lugar, havia outro olho. Um olho cinza, morto, mas que se movia como se procurasse reconhecer a própria mãe.

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