segunda-feira, 4 de julho de 2011

Frio na Espinha # 2: Ria, Armínio, ria!



No início dos anos 70, a pensão de dois andares ainda existia a uma quadra do cemitério municipal de Campina Grande do Sul.  No andar de cima, num quarto voltado para o portão dos jazigos, vivia provisoriamente o vendedor Armínio Cavalari, que aos 25 anos aproveitava a solteirice e o charme de forasteiro para encantar as meninas da cidade.
Uma dessas garotas era Lélia. Com um jeito de que não se importava muito, a professora se tornou a favorita de Armínio. Talvez porque se fizesse de difícil. Talvez porque alguma coisa muito misteriosa se passava quando, depois de se encontrarem na sorveteria nas tardes quentes de verão, Lélia ficasse em profundo silêncio, olhando tristemente para os olhos de um tagarela Armínio, ansioso por mostrar o quanto era viajado e esperto.
“Nunca vou sair daqui”, era tudo o que ela dizia. Em resposta, o vendedor fazia ecoar a sua conhecida gargalhada, tomava um gole de refrigerante, e soltava alguma frase de efeito do tipo “ninguém quer sair de uma cidade em que você mora”.
Numa ensolarada manhã de domingo, Armínio acordou tarde, ainda sorrindo com o sucesso que fizera horas antes. Passou a madrugada em um baile no famoso “Salão da Amisade”, com “s” mesmo, em um canto perto da Barragem. Dançou e bebeu como se fosse um príncipe. Sentia que chegou na pensão por milagre, a bordo de um fusquinha 66 com menos combustível que seu fígado.
Mas estava faltando alguma coisa… A carteira? Não, estava no bolso do paletó xadrez que, acreditem, fazia sucesso naquela época. A chave do carro? Achou na penteadeira. Lá na portaria, tocou o telefone. Dona Nena, proprietária da pensão, passou a ligação. Lélia!
- Ai, Lélia, tudo bem? Puxa, eu esqueci de você, broto! Saí tão bêbado de lá que...
- Você me abandonou...
- Juro que nunca mais vai acontecer. Como conseguiu chegar em casa?
- Me abandonou!
Tranquilo como sempre, Armínio considerou o esquecimento um incidente menor. O dia estava lindo, ele sabia que seu talento na pista de dança seria assunto na cidade a semana inteira. “Com o xaveco certo, já dobro essa gatinha”, pensou. E resolveu abrir a janela para respirar o ar fresco de Campina. Além do céu azul, percebeu logo que um cortejo começava a entrar no cemitério. Não conteve a gargalhada.
- Ahahahah! Só comigo mesmo... Escuta só, broto. O dia está lindo, a festa estava maravilhosa, você liga para mim de manhã, coisa que nunca faz! Tudo perfeito! Aí abro a janela e vejo... um cortejo! Alguém morreu só para atrapalhar nossa festa.
- Você me abandonou – disse Lélia, e desligou.
Armínio deu de ombros. Estava acostumado com o jeito misterioso da namoradinha. Além do mais, ficou curioso. Certamente o defunto era conhecido. Naquele tempo – como ainda é hoje – todo mundo conhece todo mundo em Campina Grande do Sul.
Desceu as escadas em saltos. “Nem ressaca”, comemorou. Atravessou a rua e rapidamente se misturou às dezenas de rostos chorosos. Ninguém parecia olhar para ele. Um ou outro desviava o olhar, como se estivesse magoado.
- Quem é o presunto? – perguntou a um adolescente no final do cortejo. Não recebeu resposta, a não ser um olhar fulminante de desaprovação.
Armínio apertou o passo e chegou ao caixão antes que o enterro começasse. Perguntou mais três vezes sobre o passamento, mas ninguém lhe dava atenção.
Até que se deparou com o envidraçado da tampa. Queria gritar, mas o que aconteceu foi o contrário: saiu uma risada nervosa, misturada com lágrimas, com desespero, com incredulidade. Lélia era a morta dentro da urna. Finalmente alguém resolveu lhe dizer alguma coisa:
- Foi encontrada de madrugada, na rodovia. Um pescador ia para a represa e viu a professora caindo ou sendo jogada de um Fusca...
Aquela risada louca que tomou conta do cemitério foi a última que Armínio deu na vida.

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