segunda-feira, 4 de abril de 2011

Quem é pior: capitão Bolsonaro ou pastor Feliciano?

Os deputados Jair Bolsonaro (PP) e Marco Feliciano (PSC) se tornaram maiores do que são nos últimos dias por conta de manifestações esplendidamente equivocadas. As frases racistas e homofóbicas que lhes deram notoriedade são fruto de maldade, ignorância ou ingenuidade. O fato é que invadiram o noticiário, as redes sociais, as conversas cotidianas com uma força que suas trajetórias políticas jamais foram capazes de proporcionar.

Mas cabe aqui refletir se eles provocaram algum mal duradouro, algum tipo de “movimento” reacionário que coloque em risco ainda mais os valores democráticos ou a saúde física e mental daqueles que o ex-militar e o evangélico parecem desprezar tanto.

O que restou da entrevista do deputado pepista ao CQC? Um site de grupo ligado aos gays foi atacado por hackers pró-Bolsonaro. Deixaram mensagens cuja criatividade e força retórica são tão irrelevantes que os administradores do espaço sequer se esforçaram para apagar. As frases homofóbicas ficaram lá, como evidência, figurações da sua natureza bufa e inofensiva.

Ora, com ou sem frases homofóbicas arranhando um portal frequentado majoritariamente por simpatizantes, gays são perseguidos, humilhados e assassinados todos os dias no país. As palavras confusas de Bolsonaro são mero ato falho de uma sociedade cheia de sapos entalados na garganta.
A instituição que dá lastro ao deputado carioca é o Exército, em nome do qual Jair Bolsonaro costuma conclamar os “valores sadios” da família, da ordem, da Lei e de outras abstrações facilmente confundidas com quaisquer idéias “bem intencionadas” que o leitor, ouvinte, espectador e eleitor possam ter.

Mas quem tem medo do Exército hoje em dia? E quando digo “medo”, falo daquela sensação que ainda vibra pelo corpo dos que passaram acordados pelos anos de ditadura. Pelo contrário, a atual juventude até nutre alguma simpatia pelas Forças Armadas – cuja imagem se liga às oportunidades de carreira e educação para jovens e a ações populares, como as pacificações nos morros cariocas ou o esforço no Haiti, que nada mais tem a ver com repressão sistemática a  “ideologias”. Talvez porque, felizmente, ninguém mais queira morrer por essas bobagens.

Ou seja, ninguém saudável sairá por aí dizendo: “Nem vou falar nada sobre o Bolsonaro porque o cara é ligado aos militares. Vai que me sequestram, torturam e somem comigo no Araguaia!” 
Provavelmente, concordando ou não com o deputado, a maioria dos militares instruídos do país pensam a mesma coisa que eu e você: “Esse camarada tem um parafuso a menos”.

É por isso que considero a intervenção do pastor Marcos Feliciano muito mais complexa e, porque não dizer, perigosa. Em primeiro lugar, Feliciano é parte de uma sólida e fervorosa bancada evangélica, que naturalmente protege seus pares e luta por um objetivo muito claro: tomar culturalmente o país.

Falando assim parece uma paranóia, mas é preciso se refletir sobre os limites do jogo democrático e na forma desleal e desproporcional que os interesses (legítimos) de uma parte da população estão lentamente se sobrepondo aos interesses dos demais cidadãos.

Pastores como Feliciano têm oportunidade de comício todos os dias do ano, em palcos humildes ou luxuosos financiados com escandolosa isenção de impostos e transmitido por uma cadeia de veículos de comunicação cada vez mais presente e invasiva – muitas vezes, inclusive, conquistada de forma ilegal, como mostraram reportagens da Folha de S. Paulo na semana passada. Com o perdão do trocadilho, Feliciano tem eleitores fiéis que, sem nem supor que estão trabalhando de graça como cabos eleitorais à revelia de qualquer garantia trabalhista, espalham o “plano de governo” comum à maioria dos pastores evangélicos envolvidos com política.

O crescimento das bancadas evangélicas nos estados e no Congresso é, mesmo que lamentemos, mérito dos grupos que vêm planejando, organizando, trabalhando firme para construir tal representatividade. “Evangélicos” são, na prática, um partido que o PSD do Kassab jamais será. E isso faz parte do jogo democrático. O primeiro problema é a desigualdade de condições: que outro setor da sociedade tem o caminho tão facilitado?

O segundo problema é o tabu: o medo, a “prudência” de se dizer qualquer coisa sobre posicionamentos políticos que nos cheguem sob o rótulo de “religiosos”.

Talvez porque, no fundo, a maior parte dos jornalistas do país estude muito pouco e esse pouco se torne perigoso: encantados com um discurso politicamente correto de “respeitar as diferenças” e vítimas de uma cultura de auto-ajuda e “marketing do bem”, observadores com espaço na mídia se rendem a um argumento pró-religioso fácil, que neutraliza e estereotipa qualquer crítica, sobretudo a ações cristãs.  Nos últimos anos, uma leitura rasa de pesquisas ligadas aos Estudos Culturais financiou uma superstição que impede intelectuais de se oporem a simbologias populares, mesmo que estas representem a humilhação da mulher, do negro, do gay… tolerar o ato de cortar com caco de vidro o clitóris de crianças em nome da religião ou permitir que jovens se imolem ou se crucifiquem se tornou “respeito à diferença”. Criticar virou “imperialismo” ou “alienação”.

É preciso se admitir que, pelo menos, Jair Bolsonaro não se vale de desculpas metafísicas para propagar seu ponto de vista defunto. Sua vinculação com Deus é vaga e só faz parte do pacote de signos conservadores que anima o discurso. Já Marcos Feliciano levanta a Bíblia e se diz amparado: Noé foi pego pelado e bêbado pelo filho Cam. A maldição etílica cai sobre seus descendentes. “Não sou eu quem está dizendo”, brada Marcos Feliciano, “é a Bíblia! Africanos são filhos malditos de um bêbado amedrontado com a sexualidade. Para piorar, ele emenda: mas calma, basta aceitar Jesus que a maldição vai embora.

Sejamos francos: existe armadilha discursiva mais canalha do que essa?

O que podemos esperar disso tudo é que instituições religiosas sérias e o próprio Exército pelo menos desautorizem publicamente esses aloprados que uma hora ou outra vão queimar livros, montar milícias ou transformar os pecados pessoais (ainda que gula ou amor) em crimes públicos, puníveis com açoites e escárnio.

2 comentários:

  1. Em tempo: para quem não conhece, Feliciano é o da primeira foto, aquele que está fazendo um sinal de "mano" abraçado ao pastor Miranda. A imagem mais abaixo é a de Bolsonaro, sorrindo emocionado.

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  2. Bolsonaro é aquele mesmo que durante o governo do FHC declarou publicamente que a ditadura deveria ter matado o então presidente, quando teve oportunidade. A declaração passou por "destempero" e ficou por isto mesmo. Continuou no cargo público com salário idem. Não se trata de comparar uns e outros. O duro é ter que conviver com ambos como representação.

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