quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Sangue, barro, pó, cicatrizes... o motivo de ser jornalista

Mergulhar no pó, no barro, na sujeira; afastar os galhos que ricocheteiam e deixam cicatrizes nas canelas, no rosto, no pulso; sentir o cheiro vívido do sangue e da gasolina, esfregar automaticamente os olhos ardidos com a fumaça...

É por isso que escolhemos o jornalismo.

A cada dia mais me convenço que uma intuição ancestral, um meme, um rastro deixado longiquamente por ancestrais dedicados a mapear o trajeto de suas caças é o ânimo oculto que nos empurra para a profissão.

De alguma maneira, a prática do jornalismo parece um amálgama entre a necessidade pré-histórica de decifrar os movimentos inusitados da natureza e a contemplação vicária decorrente da invenção e popularização da imprensa.

O jornalista narra e publica. Ao publicar, devolve sua solução dos enigmas investigados a nova apreciação. Ele narra como os caçadores paleolíticos, que eram capazes de reconstituir a epopéia de uma capivara por pegadas, galhos quebrados, ossos, buracos, pelos...

O jornalismo remonta uma tradição de compreender o mundo que sucumbiu ao predomínio da ciência galiléica, a da experiência. As matérias não são, nem nunca serão exatas: elas são fruto da impossibilidade de simplificação e normatização. Um acidente rodoviário não representa todos os acidentes; um político não é o mínimo múltiplo comum de todos os seus pares.

No entanto, outra tradição, a da conformação industrial, é também resultado direto de uma cultura muito sólida e enraizada na sociedade urbana. Embora mais recente, essa cultura nos preenche e nos exige, é até mesmo naturalizada em nossas ações. Ela é filha do pensamento cartesiano e fundada, claro, no paradigma de Galileu.

Por isso, encurtamos e esticamos nossas abduções, nossas conjecturas, em formatos paradoxalmente fechados, utilitários, otimizados, previsíveis. Falamos do momento único e peculiar (sempre tratamos do único, não importa que seja a 100ª matéria sobre corrupção ou buracos na vila) mas traduzimos em fórmulas, limites de caracteres e clichês de linguagem. O que chamamos de “estilo jornalístico” ou “padrão editorial” jamais passa de uma Cama de Procusto.

O jornalismo é ou não é um índice vivo do problema epistemológico das Ciências Humanas e Sociais?

Talvez nosso parentesco mais próximo não seja com os primos Direito, História e Literatura, com quem dividimos algumas pretensões éticas e intelectuais. Provavelmente seja com a Medicina.

Assim como os médicos, fazemos diagnósticos baseados em sinais fornecidos pela realidade. Também erramos na maioria das vezes. Assim como eles, conquistamos prestígio e ódio da sociedade com sazonalidade impressionante.

A medicina ganhou um prestígio que ainda não conquistamos, talvez porque nascida de uma confusão entre misticismo e ciência. A palavra conjectura praticamente vem à luz com Hipócrates. O diagnóstico é uma análise das "conjecturas". E não é a toa que sua origem latina esteja relacionada com “adivinhação”.

O jornalismo, por sua vez, nasce na sociedade cínica da técnica, da produtividade, dos números. Ninguém nunca acreditou, em nenhum período da história, que nossas compreensões relatadas da realidade eram fruto de clarividência. A narração se resume a nós, sem deuses ou invocações sobrenaturais, nossas escolhas de como olhar e o que relatar, o próprio relato, o dispositivo de interação e, finalmente, quem nos interpreta. 

No meio do circuito, muita educação semiótica se processou. O público da modernidade, já se disse, é semiótico: ele não só pondera a realidade, como as ferramentas que lhe mostram a realidade.

Então por que ser jornalista, esse artesão da esquizofrenia?

Talvez não tanto por causa dos fins – mostrar, denunciar, esclarecer, tecer a esfera pública, essa ambição ética e cosmológica  – mas pelo prazer da própria prática.

Queremos estar lá, no meio da confusão e dos galhos partidos, de joelhos no barro coletando as pistas que nos levarão, quem sabe?, à resolução final. Somos testemunhas com todo o corpo, não apenas com os olhos e ouvidos.

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Esse texto surgiu da enésima leitura de um artigo maravilhoso de Carlo Ginzburg chamado Chaves do mistério: Morelli, Freud e Sherlock Holmes, incluído na coletânea O signo de três, organizada por Umberto Eco e Thomas Sebeok (Perspectiva), mas também presente com tradução diferente em um livro do próprio Ginzburg, Mitos, Emblemas, Sinais (Companhia das Letras). Não deveríamos sair da faculdade sem estudar minuciosamente esse trabalho (inclusive por razões motivacionais).

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