domingo, 27 de novembro de 2011

Primeira pessoa!

Hoje, na Ilustríssima da Folha.


"La garantía soy yo!"
A febre da primeira pessoa nos ensaios americanosPAULO ROBERTO PIRES
RESUMO
Excluído da não ficção e pária no jornalismo, o "eu" faz uma volta triunfal e impositiva na escrita ensaística americana, como se pode verificar na edição deste ano de "The Best American Essays". Se o resultado é discutível, o princípio é razoável: por que banir a subjetividade da escrita, já que a pretensão à neutralidade da terceira pessoa não é garantia de absolutamente nada?
São 24 os melhores ensaios publicados em 2011 nos Estados Unidos. A lista, sujeita a contestação como todas as listas, é da série "The Best American Essays" [Mariner Books, 320 págs.,
R$ 38,60], que chega ao seu 26o ano com a seleção entregue a Edwidge Danticat, autora de origem haitiana que em 2008 venceu o Book Critics Circle Award com "Brother, I'm Dying" e desde então é figurinha fácil nas páginas de revistas como a "New Yorker".Todos os textos selecionados têm, como era de se esperar, indiscutível qualidade e acabamento formal. Tratam, de forma igualmente previsível, de um amplo espectro que vai do câncer ao Facebook. E, em sua esmagadora maioria, trazem em seus primeiros parágrafos uma portentosa primeira pessoa.
Este texto poderia ter começado assim. Mas talvez estivesse mais em sintonia com um certo espírito do tempo desta outra forma:
"Quando folheava a edição de 2011 do 'The Best American Essays', hábito que cultivo em busca de textos para publicar na revista que edito, comecei a perceber o quanto os autores selecionados são pessoais em seus textos. Talvez por influência da organizadora do volume, Edwidge Danticat, haitiana notabilizada com uma autobiografia, 'Brother, I'm Dying', que publiquei no Brasil com o título 'Adeus, Haiti'. Talvez, ainda, porque o engajamento de quem escreve torne seus textos mais contundentes para quem lê. É desconcertante como Christopher Hitchens ironiza sua condição de paciente de câncer e curioso que Zadie Smith tenha testemunhado, quando estudante de Harvard, o nascimento do Facebook."
Tradicional excluído dos meios da não ficção, pária no mundo do jornalismo, o "eu" faz hoje uma volta triunfal e impositiva. Nessa antologia, a primeira pessoa é o eixo de 21 dos 24 ensaios selecionados, seja a experiência do narrador a matéria-prima do texto, o que se explica -ou apenas um pretenso certificado de autenticidade do que ali se conta. É como se o escritor, transformado num Walter Mercado das letras, procurasse tranquilizar a clientela com um velho slogan: "La garantía soy yo!".
É claro que o fato de o romancista Mischa Berlinski estar no Haiti traz substância indiscutível para "Port-au-Prince: The Moment" (Porto Príncipe: o momento), um relato do terremoto que devastou o país ano passado. A meditação de Pico Iyer sobre a recorrência e a importância em sua vida de refúgios dedicados à prece e à contemplação também é a medula do belo "Chapels" (capelas).
PRAGA ENSAÍSTICA
Fica a dúvida se realmente temos que saber detalhes da vida sexual de Bridget Potter e de seus infortúnios com uma (ineficiente) espuma rosa anticoncepcional para entender melhor o mundo do aborto ilegal nos EUA desde a década de 1960. Ou se a morte dos pais de Katy Buttler, com todo respeito, fazem de "What Broke My Father's Heart" (o que partiu o coração de meu pai) uma reflexão mais acurada sobre as decantadas perversidades do sistema de saúde dos EUA. Ou ainda que a descrição de um périplo de Susan Straight com seus filhos e o pai deles, "Travels with My Ex" (viagens com meu ex), lance uma luz realmente nova sobre o renitente preconceito racial em seu país.
Ser "pessoal" virou, sem dúvida, uma moda e uma praga na escrita ensaística americana. Se o resultado é discutível, o princípio é mais do que razoável. Não há mesmo por que banir a subjetividade da escrita, já que a terceira pessoa e sua pretensão à neutralidade e à acuidade não são, em si, garantia de absolutamente nada.
ENSAIO PESSOAL
Não custa lembrar que, na tradição anglo-saxã, ensaio não é sinal exterior de distinção intelectual ou pedregoso exercício acadêmico -estes os sinônimos desgraçadamente mais frequentes em nossos dicionários. Naquela acepção, são igualmente "ensaios" uma composição escolar ou uma reflexão de Lionel Trilling.
O que define esse gênero de fronteiras tênues é, antes de qualquer coisa, o desenvolvimento de um raciocínio que, sem se pretender conclusivo, sugira interpretações criativas de um tema ou fato com total liberdade de referências e forma. Nessa lógica, nada mais natural do que o surgimento de um subgênero batizado "ensaio pessoal" -e que tem em um autor da qualidade de Phillip Lopate um expoente e, também, um teórico. "The Art of the Personal Essay" (a arte do ensaio pessoal), antologia que organizou em 1997, tornou-se uma referência ao demonstrar como, desde Sêneca ou do incontornável Montaigne, a primeira pessoa pode fazer uma diferença sensível na escrita de não ficção.
Há, no entanto, uma fronteira tênue entre a marca pessoal forte e a pura "egotrip", viagem à roda de si mesmo em tudo favorecida quando, nas redes sociais ou nos programas de TV, intelectuais e iletrados unem-se no mal disfarçado prazer em expor suas intimidades. Oferecendo à humanidade mais informação do que lhes foi requisitado, das fotografias do que comeram numa caríssima degustação gastronômica ao relato expiatório de abusos sexuais, estes exibicionistas, amadores ou profissionais, tornam obsoletas ideias como privacidade ou intimidade -ambas razoáveis, convenhamos, para um convívio urbano.
Neste "The Best American Essays", versão 2011, os princípios do ensaio pessoal se repetem como farsa do mundo superexposto. "Nós estamos narrando, afinal, (assim como meu pai), vislumbres de momentos, fragmentos de vidas, declarando nosso amor e ódio, preocupações e ambivalência, expondo nossos 'eus' ocultos, na expectativa de que o que dissermos fará sentido para os outros", escreve Edwidge Danticat. Mas poderia ter dito o mesmo a Oprah Winfrey.
GRANDE ESCRITOR
A própria organizadora tem, é claro, seus bons momentos. E com uma escolha particularmente feliz demonstra a fragilidade da grande maioria das outros. De Christy Vannoy sabe-se que trabalha em um primeiro romance e é colaboradora da "McSweeney's". Foi lá, na revista modernosa editada por Dave Eggers, que publicou "A Personal Essay by a Personal Essay".
A ideia lembra o nonsense das melhores crônicas de Woody Allen: trata-se de um ensaio pessoal escrito por um Ensaio Pessoal, criatura do sexo feminino que sofreu abusos da mãe, foi engravidada por um primo, teve um filho com problemas mentais e, depois de uma menopausa precoce, teve que retirar seu útero.
Ensaio Pessoal fêmea relata -em primeira pessoa, é claro- sua experiência numa oficina promovida por uma revista feminina. Dentre seus colegas estão o Ensaio sem Braços, o Ensaio Homossexual, o Ensaio do Divórcio, o Ensaio Refugiado. Logo surge no grupo um patinho feio, o Ensaio sobre a Terça-Feira. A rejeição tem lá seus motivos, já que o texto não era "sobre a terça-feira de uma amputação, apenas sobre uma velha e comum terça-feira. Ele insistia em começar frases sem o pronome pessoal 'eu' e em comparar uma coisa com outra em vez de simplesmente disparar falando o que aconteceu".
Pois não é qualquer vida que tem estado no centro dos ensaios pessoais. Trata-se, em geral, de uma vida que poderia ser boa, mas não o é por culpa de outrem, seja um ditador ou uma doença fatal. Por isso é, de fato, antológico, o "Tópico de Câncer" que Christopher Hitchens publicou na "Vanity Fair" pouco depois de seu diagnóstico. Com a dureza de sempre, Hitchens narra sua vida como cidadão de Tumorville, uma terra democrática e sem racismo, mas onde não se fala em sexo e a comida é sempre ruim.
No país da doença, lembra ele, o dominante é um imenso clichê, o da vitória e superação -muito frequente, aliás, dentre os melhores ensaios de 2011. "As pessoas não têm câncer: elas sempre estão lutando contra o câncer. Nenhum voto de melhoras omite a imagem combativa: Você pode derrotar isso", escreve ele. "Mesmo os obituários falam dos que perderam para o câncer, como se fosse razoável dizer que alguém tenha morrido depois de uma longa e corajosa luta contra a mortalidade."
E. B. White, um dos bambas do gênero, dizia que o ensaísta jamais deve se pretender um grande escritor. Ao contrário, lembrava ele, "deve estar feliz com o papel autoimposto de cidadão de segunda classe". Mas o mal do tempo parece ter mudado de escala, pois o ensaísta nem mais aspira ao status de criador: ele se basta como criatura, princípio e fim de meditações sobre umbigos que, convenhamos, nem sempre estão cercados por interesse ou inteligência.

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